segunda-feira, 15 de setembro de 2008

CRÔNICA ÉPOCA DA CAMPANHA ELEITORAL ELEITO COLLOR

TEATRO NA VIDA

Quem diria? Estamos em pleno mar Barroco e selvagem. Porque quem pensa que o que importa é o importante está fadado a ficar como meu primo, que não encontrava mais a marca do cigarro que fumava e nem a do desodorante que usava. Sentiu-se jubilado do mundo e entrou em crise existencial. Depois da terapia ele não fuma mais e passou a usar bicarbonato de sódio nas axilas. A verdade é que ninguém conhece mais ninguém e se aparecer alguém de verdade, alguém tremerá de medo do outro lado. Nós não temos mais interesse e não somos mais interessantes, por isso inventamos máscaras, criamos personagens e assim perdemos o medo. No mundo das aparências não nos enganamos, conseguimos nos decifrar, nos amar, nos interessar. Esse foi o caso de um jovem chamado Marcelo que teve que se transformar em Ernesto Varela para conseguir decifrar os políticos que entrevistava. Marcelo perdeu o medo e o Ernesto conseguiu ser repórter de televisão. Aliás, falando em televisão, foi exatamente o seu grande desenvolvimento que ajudou tudo a se transformar em representação e a vida num grande show. Qualquer fato, até o mais simples, ganha ali a dimensão dramática adequada e os seus intérpretes se transformam em personagens através de técnicas exemplares. Até os seus locutores possuem a mesma inflexão, sorriem na hora exata e mexem na caneta na hora certa, como se tudo não passasse de um vídeo-tape infernal. A verdade entrou em crise porque a técnica possibilita que se represente com maior verdade. Saber escolher as personagens e representá-las de maneira adequada. Eis a receita para o sucesso. Mas sempre foi assim, toda a vida representamos papéis sociais! (diria o chato que existe dentro de nós) E eu respondo: - Mas agora é demais, a procura de personagens alienantes e o requinte da técnica de representar chegaram aos píncaros da loucura, às raias do absurdo total! (e o chato por concordar comigo, mais pela beleza do final da frase do que pelo seu verdadeiro conteúdo) Sinal dos tempos, muito conteúdo confunde. O meu primo, por exemplo, era letrado, muito culto mesmo. Conhecia profundamente filosofia, história, português e outras línguas, geografia, psicologia, além de tocar magistralmente piano. Entretanto, além de não ter o mínimo talento para o teatro, representava, mal e porcamente, a si mesmo. Acabou por assustar a todo mundo e isso é muito feio. De que adiantou? Foi jubilado e hoje amarga o fracasso com bicarbonato de sódio nas axilas. E tudo era tão simples, as personagens que todos gostam estão aí, nos shoppings, nos filmes americanos de ação, nas telenovelas, nas propagandas... coitado, bastava ele copiar uma...uma só. Outro problema daqueles que fracassam é a mania de inventar personagens e máscaras. Pretensão e água benta são para todo mundo! Então, o rio de dinheiro, que se gasta atualmente nas pesquisas de opinião pública afim de que nasçam personagens interessantes, capazes de satisfazer o sonho de qualquer ser humano, deve ser desprezado? Os heróis atuais não têm mais nada de introspectivos, nada de profundidade psicológica ou filosófica. São pessoas que não pensam e falam muito pouco, mas agem através de movimentos rápidos e certeiros. Pensar, na verdade, atrapalha a ação. A personagem moderna é capaz de, numa fração de segundo, arrancar os olhos e decepar um braço do desafeto, enquanto tem relações sexuais com três louras, duas morenas e uma ruiva. O cinema americano de grande bilheteria disse isto e se ele disse, ele disse e pronto. Vejam as filas, vejam os rostos das crianças e dos adultos, vejam as fantasias dentro das lojas, vejam as bocas comendo carne e queijo derretido dentro dos Mac Donalds sempre lotados... veja o mundo criado a custa de muito dinheiro. Se o capital disse, disse e pronto.

Pulando de gato para cachorro estou agora me lembrando das campanhas eleitorais para presidente da república. As equipes de comunicação criaram as personagens, porque sabiam que, principalmente na TV, tudo teria que se transformar em um show de máscaras e de representações exemplares. Alguns amigos meus tentavam descobrir qual seria o melhor presidente para o nosso país. Eu lhes disse: - Bobagem, a boa ou má vai ganhar a personagem, a máscara, cujo ator tiver o melhor desempenho teatral. Dito e feito, aos poucos as máscaras foram desfilando pela tela e eu fiquei impressionado com a qualidade de representação dos nossos atores maiores. Caro leitor, a partir deste trecho, tudo o que eu, disser, deve ser entendido como uma análise de alguém, como eu, que durante quase a vida toda fez e ensinou teatro. E nenhum momento estarei me referindo às qualidades do candidato, mesmo porque num processo de comunicação de massa, se elas existirem, jamais poderão ser avaliadas. Estarei falando sobre as personagens que eu vi e os intérpretes que observei. Para o grande público esses foram os verdadeiros candidatos. No primeiro turno uma grande variedade, até certo ponto, interessante. Um deles tentou criar a máscara do esquecimento, daquele que sofre de amnésia. Mudou os óculos, passou gumex no cabelo, virou garoto propaganda, mudou o tom do discurso enfim, ficou mais “clean”, Poderíamos chamar sua personagem de “o ingênuo”., Seu erro principal – infringir as regras artisto-técnicas de dramaturgia, segundo as quais toda e qualquer variação da personagem, principal a qualidade, precisa ser preparada de maneira muito habilidosa para que o público aceite como verossímel. Outro criou a máscara do professor, sempre com conceitos muito bem articulados e coerentes. Como todo mestre parecia saber mais do que todo mundo, o que levou várias vezes a posar com certo cinismo de conhecimento. Bastante introspectivo, e profundo acabou ganhando o voto de alguns intelectuais (inclusive o meu). Seus erros fatídicos: a voz era péssima, os gestos pouco expressivos e muito interessante em conceitos bem articulados. Não conseguiu emplacar também um outro que representou uma espécie de justiceiro do sertão, a favor da vida simples, mas ao mesmo tempo disposto a dar socos e pontapés sem muita classe. Infelizmente, para ele, o country brasileiro ainda não estava tão na moda, depois, era uma personagem que assustava até os nazistas. Foi mais realista do que o rei. Um outro tinha até uma personagem interessante, jovial, fazia gestos para os surdos e mudos, entretanto, era um canastrão de marca maior. Franzia indevidamente a sobrancelha, como se esforçasse para desempenhar o seu papel e mudava muito quando a câmara o pilhava distraído. Seu erro foi o de ser um mau ator. Representava em rompantes exagerados e não o tempo todo como um bom comediante da linha stnislavskiana. Um candidato velhinho já entrou com a personagem derrotado. Num mundo que idolatra a juventude, onde todos preferem morrer à envelhecer, o velho jamais poderá ser protagonista. Quando muito poderia ser o simpático coadjuvante do Zorro ou do Roy Rogers. Ah, quase me esquecia de um gordo que suava o tempo todo e falava, com uma péssima dicção, coisas que não tinham o menor interesse e de um outro tipo “cantor de tango” que, num grande momento, chorou. O que eles não sabiam é que o público queria ver somente o suor produzido pela maquiagem, que é um suor limpo e heróico e não o verdadeiro de um obeso. Esqueceram-se também de que o público não está afim de qualquer melodrama. Enfim, todos acabaram ficando por ali mesmo. Talvez a grande surpresa foi o conteúdo irreverente de um personagem que apenas disse o seu nome. Para o segundo turno foram os melhores atores e as personagens mais dramáticas. De um lado o herói popular, que veio de baixo, o comprometido com a ralé até os ossos, a força salvadora que perdeu dedos na máquina que o explorou, um digno representante do sofrimento do todo um povo explorado. Um forte candidato, um ator com o físico ideal para o papel. Quase ganhou. Perdeu por pouco. Ganhou quem? Ganhou o óbvio. O alto, o forte, o que usa gravatas caras e bebe as mais finas bebidas. Aquele que é capaz de lutar karatê no Japão, de jogar futebol na Itália e de fazer Cooper na Alemanha. Aquele que num dia de chuva abriu a camisa e gritou para as montanhas – Me mate se tiver coragem! Ganhou aquele que teve o gesto do punho fechado fortemente para os céus. Aquele que disse eu faço, eu farei, e sempre farei. Aquele que começava o seu horário copiando o início dos filmes do super-homem. O caçador de marajás, segundo os brasileiros e o caçador das esmeraldas segundo o presidente dos U.S.A. Ganhou aquele que entendeu a mensagem do Spielberg. Ganhou o herói que nós na verdade não somos, mas sonhamos ser. Ganhou o Rocky, misturado com o Indiana Jones e o Rambo. Ganhou o óbvio, ganhou o representante daqueles que manipularam os nossos sonhos, ganhou o melhor ator e... que Deus nos ajude! O resto... bem o resto vai ficar junto com o meu primo amargando um bicarbonato de sódio nas axilas, enquanto não aprendem a fazer teatro nesta vida.

Armando Sérgio

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