segunda-feira, 15 de setembro de 2008

MEMORIAL PARA CONCURSO DE TITULAR USP

Índice

Prefácio

1. Ponderações Iniciais (1991)

2. O Teatro na Infância (1991)

3. O Teatro na Juventude (1991)

4. O Estudo de Teatro (1991)

5. A experiência no Ensino Fundamental (1991)

6. A Carreira Universitária – 1ª Fase (1991)

7.O Intermezzo Administrativo (1991)

8. A Carreira Universitária - 2ª Fase (1991)

9. O Segundo Intermezzo Administrativo (1999)

10. A Carreira Universitária – Continuação da 2ª Fase (1999)

11. A Carreira Universitária Pós- Livre Docência


Prefácio

Esta é a terceira vez que reescrevo e atualizo este Memorial. A primeira versão foi realizada em 1991, quando prestei o Concurso de Ingresso para professor de Interpretação Teatral, aqui mesmo na ECA. A segunda, quando me submeti ao Concurso de Livre Docência, em 1999.

Peço, portanto, ao caro leitor a compreensão de que narrativa passará por três estilos diferentes. Principalmente os fatos que antecedem a década de noventa são narrados de maneira mais ingênua, mais literária, que eu fiz questão de manter, pois, sendo este um Memorial, deve demonstrar as diferenças de como operou a minha memória durante todos esses anos.

E acho não poderia ser de outra maneira. Levei um susto, quando reli minha primeira versão: meu filho mais velho, na época tinha vinte anos hoje é casado e um "videomaker", com um programa diário na TV da cidade e acaba de me dar uma netinha, Luiza; o do meio tinha dezessete, agora é Médico Otorrino; e a caçulinha, aquela a quem chamávamos de pequena, que tinha onze anos, agora é uma Cirurgiã Dentista.

Reforçou-me, ainda, a idéia de manter o estilo original, o elogio feito, em 1991, pelo emérito professor Boris Schnaiderman, naquele seu jeito simples de ser: “Você sabe escrever... Foi um prazer ler o seu Memorial”.

A diferença, relacionada aos conteúdos, está na da importância que damos aos fatos. Amplia–se o grau de seletividade, conforme amadurecemos. Como o leitor poderá perceber, o amadurecimento é “faca de dois gumes”. Amplia-se o conhecimento, a consciência e a segurança, mas perde-se a saudável ingenuidade e os detalhes...

1.Ponderações Iniciais (1991)

Eis uma situação, dramaticamente, interessante! Devo fazer um memorial circunstanciado, em que sejam comprovados os trabalhos publicados, as atividades realizadas, pertinentes a este concurso e demais informações que permitam a uma banca examinadora a avaliação de meus méritos para ocupar um cargo de Professor Titular na Especialidade de Interpretação Teatral do Departamento de Artes Cênicas (CAC) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Consulto meus diabos e meus anjos e concluo que a sinceridade deverá ser exemplar em uma situação dessas e, para ser sincero, devo dizer (escrever) que, para a formação de um homem de teatro, tão importante quanto os títulos universitários, tradicionalmente enfatizados neste tipo de concurso, situam-se alguns fatos e atividades quotidianas, aparentemente corriqueiras, mas que demonstram ser a formação de um professor-artista, iniciada muito antes de qualquer estudo específico. Na verdade, ela começa no momento em que tomamos consciência do mundo sensível que existe dentro e fora de nós mesmos.

Acredito existir um modo específico de experimentar a vida, que nos leva para o caminho da expressão artística. No meu caso, penso que isto foi marcante, como tentarei demonstrar.

O estudo do Teatro foi o ponto necessário para que eu me transformasse em um professor-artista, ou um artista-professor.

Como artista, creio ter aprendido a mergulhar no mistério da vida e dos sonhos humanos e, como professor, acredito ter aprendido a refletir sobre esse mergulho, a fim de que hoje possa proporcionar aos jovens estudantes de teatro o conhecimento de procedimentos específicos que os ajudem a representar, de maneira artística e exemplar, as ações humanas. Exerço o meu ofício torcendo para que esses jovens possam mergulhar nos mistérios da vida, de maneira mais profunda e completa que aquela que eu consegui.

2. O Teatro na Infância (1991)

A primeira obra de arte de que me recordo, talvez aos três ou quatro anos de idade, é a de uma negra alta, forte e rechonchuda, estendendo roupas brancas em um varal. O seu canto é agudo, suave... Mavioso.

Ainda me lembro de que todos, à mesa, paravam de fazer ruídos e ficavam, em silêncio, ouvindo Izabel cantar, fantasticamente, ao pôr do sol. Meus pais tinham mais o que fazer, mas eu não, eu podia ser sempre um espectador privilegiado enquanto brincava no quintal. À noite, eu me aninhava no seu colo macio e dormia. Ela não me contava histórias, mas cantava suavemente nos meus ouvidos, enquanto me embalava calmamente. Um dia, Izabel sumiu, não sei quando nem por quê. Talvez tenha ido inspirar outra família.

Ao lado das brincadeiras e dos jogos excitantes que a vida proporcionava nas ruas e quintais de Mogi das Cruzes, posso dizer que minha infância foi, artisticamente falando, quase que totalmente musical.

Morava conosco uma tia que possuía uma coleção fabulosa de discos. No centro da sala, existia uma vitrola grande, que quase nunca vi desligada. Havia discos de todos os tipos, mas os que me fascinavam verdadeiramente eram os de ópera. Os de “Gino Becchi”, “Gigli” e “Caruso”. É interessante pensar que a ópera me seduzia sob dois aspectos: a voz forte do cantor, que aos poucos fui aprendendo a imitar, e o ritmo que me contagiava o corpo.

Eu tinha visto, não sei onde, um tio maestro reger a pequena banda da cidade e aquilo também havia me chamado a atenção. Com um pedaço de pau na mão, eu passava horas e horas regendo óperas, no meio da sala. Os adultos tentavam me imitar, mas nenhum deles conseguia a minha performance. Eu tinha o tempo todo para ensaiar, eles não.

Lembro-me de que, com minha batuta, eu conseguia demonstrar as filigranas de harmonia e de ritmo das óperas. Incrível, mas eu dominava uma técnica bastante pessoal, aos cinco ou seis anos de idade, em virtude de uma repetição disciplinada.

A pré-escola, que naquela época chamava-se Jardim da Infância, não me marcou muito. Lembro-me apenas de umas enormes freiras censurando-me porque eu não sabia desenhar bolas redondas o suficiente no meu caderno de caligrafia. Minha letra, até hoje, é péssima. Talvez, se eu tivesse treinado...

Um dia estava eu, lá na sala, cantando, e as pessoas paravam de fazer o que estavam fazendo e ficavam me olhando. No dia seguinte, minha mãe começou a me mostrar às amigas e aos parentes, inclusive aos meus primos, que, nesses momentos de cantoria, sempre arregalavam os olhos como se eu fosse um extraterrestre.

Logo minha mãe me arrastou para a casa do tio maestro, que tentou me ensinar canto. Eu, contudo, ficava aborrecido ao fazer toda aquela escala musical; achava mais interessante ficar imitando os cantores. Essa espécie de falta de disciplina talvez tenha sido a responsável pelo primeiro vexame artístico de minha vida.

Nas audições caseiras, de amigos e parentas, eu cantava um repertório simples. Lembro-me, particularmente, de Pequeno Jornaleiro (Olha a noite! Eu sou um pobre jornaleiro. Que não tenho paradeiro. Ai de quem vive assim!). Um dia, entretanto, levaram-me para cantar na Rádio Marabá, a única emissora da cidade. Escolhi, ou escolheram, a ópera Estrada do Bosque. O regional entrou e eu entrei também, só que em uma oitava acima. Fiasco total! Desafinei nos agudos. Meus pais tinham avisado a cidade inteira; talvez o único ausente ao pé do rádio tenha sido o meu tio maestro.

Depois do fiasco, entrei para a Cruzada Eucarística, menos por religião e mais porque o ambiente era pleno de atividades interessantes para um garoto. Espectador privilegiado, pude observar de perto, dos bastidores, todo o ritual fantástico da Santa Missa. Assistir a paramentação luxuosa dos padres antes do ofício de domingo. Olhar de perto e atentamente, enquanto todos abaixavam as cabeças, o momento solene da consagração da hóstia, para mim, até hoje, o instante onde o padre mais acredita na encarnação de Jesus Cristo. O Sangue e o Corpo se materializando enquanto os sinos soavam... Eram momentos maravilhosos demais para uma criança.

Minha "carreira artística" continuou na Igreja. Minha mãe, depois do trauma da Rádio, entusiasmou-se novamente e mandou confeccionar um lindo figurino. Lembro-me apenas de um palquinho apertado, iluminado por luzes muito coloridas e um senhor de óculos, com um acordeão, nos bastidores. A diretora de cena era uma beata, muito magra, chamada Inês. Recordo-me vestido de príncipe com uma túnica amarelada de cetim, enfeitada com galões azuis. Ao meu lado, uma linda garota, vestida de camponesa. De mãos dadas, cantávamos em dueto: "Que fazes aqui, linda camponesa, cabeça baixa, triste a pensar!" Ao que ela respondia: "Tenho a esperança, desde criança que ainda um dia se realizará!”

O sucesso do show animou frei Inácio a ensaiar conosco uma peça. Deu-me um livretinho, escrito em português de Portugal, do qual eu deveria decorar as falas do “Corcunda”. Pela primeira vez eu vi um texto de teatro e, confesso, não gostei. Teatro era muito mais complicado do que cantar. O padre, coitado, acho que desistiu do intento logo nos primeiros ensaios.

Lembranças de teatro mesmo, quer dizer, de atores representando ações dramáticas, tenho muito poucas. Um cirquinho de lençóis que sempre acontecia na casa de um amiguinho e uma peça à que assisti num salão. Só me lembro de uma cena de moleques, talvez criados, escondidos sob uma mesa. Meu teatrinho, eu fazia em casa para uma única espectadora, mineira muito risonha do interior, que cozinhava para a família. Quando meus pais não estavam em casa, à noite, ela sentava-se na poltrona da sala e eu fazia do tapete o meu palco. Eram cenas de pura ação exibicionista, como quedas desastradas ou mortes violentas. Aquela mineira, a dona Maria, foi o melhor público que já tive. Emocionava-se e ria a valer durante a noite inteira.

Poucos possuem a sorte de ter uma mãe bibliotecária do município. A biblioteca estava instalada em um prédio alugado, um casarão colonial autêntico, com um quintal enorme, típico do interior, cheio de folhagens e árvores frutíferas. Durante a maior parte da minha infância, era ali que eu ficava durante todas as tardes. Sozinho, eu explorava o mundo fantástico do quintal, mergulhava nos livros, mergulhava no sentido literal da palavra. Meu primeiro contato com os livros foi sensorial. Eram pilhas de livros velhos, outras de livros novos, que eu abraçava, cheirava, mordia. Quando aprendi a ler, devorava as histórias infantis. Lembro-me, particularmente, das desventuras aventurosas de um papagaio chamado “Globi” e, logicamente, de toda a coleção de Monteiro Lobato. O quotidiano da minha infância dividiu-se entre o Casarão e os jogos na praça em frente à escola primária. No Casarão, um contato físico e sensorial com livros, e, na praça, o esforço físico e intelectual para vencer meus amigos durante os jogos. Acho que aprendi muito cedo que não existe muita diferença entre a reflexão e a ação, entre o estudo e a vida, entre o pensar e o fazer.

Da escola primária ficaram apenas os carinhos de algumas professoras, um honroso segundo lugar no diploma e uma menina bonita que se sentava na segunda carteira.

3. O Teatro na Juventude (1991).

A passagem do curso primário para o ginasial provocava, naquele tempo, uma mudança radical em nosso comportamento. Para começar, havia o dificílimo exame de admissão. A tradição confirmava que, dali em diante, podíamos aposentar as calças curtas e usar as compridas. Com terno cáqui, camisa branca e gravata preta, parecíamos pequenos adultos.

Quando saí de casa e me dirigi ao Instituto de Educação Dr. Washington Luís, o centro de irradiação cultural, social e esportiva da cidade, senti que minha vida, ritualisticamente estava se modificando.

Se a escola primária passou em brancas nuvens, a secundária transformou-se em um vendaval de prazeres.

Das aulas, não tenho muito o que dizer; apenas que os professores eram muito rígidos e tradicionais e que a filosofia reinante era a do ensino intelectualizado e elitista. O currículo incluía duas línguas vivas (o francês e o inglês) e uma língua morta (o latim). As aulas, entretanto, eram aulas, e nós fomos condicionados a pensar que ali não era um lugar de diversão e prazer, mas sim um intermezzo de obrigação e disciplina. Deixávamos o prazer para depois que batia a sineta e, nos pátios e corredores, vivíamos intensamente.

No final dos anos cinqüenta e início dos sessenta, os tempos eram de grande liberdade. Praticamente toda a atividade cultural, esportiva e social era programada e comandada pelos próprios alunos, através do “Grêmio Estudantil”, uma das primeiras instituições abolidas pela ditadura militar, exatamente por sua eficácia aglutinadora.

Eu permanecia na escola, praticamente, em R.D.I.D.P (tempo integral). Muitos jogos, bailes, namoros e a melhor fanfarra do Brasil, da qual muito me orgulho de ter sido o corneteiro-mor.

Nas trilhas do teatro, o mais importante foi o fato de que eu e alguns colegas resolvemos fazer um movimento cultural para usufruir o grande auditório (400 lugares) da escola.

"Bolávamos" e executávamos, aos sábados, um espetáculo de variedades (quantas variedades, desde monólogos até números instrumentais), chamado de “Programa Estudantil”. Eu participava da criação, era um dos alunos da “Escolinha de Grupo” e gostava de dublar o Elvis Presley, de quem imitava, também, as exageradas expressões corporais, incluindo sua famosa pélvis ondulante da qual, segundo não sei quem (acho que foi Paulo Francis), nasceu uma parte da esquerda, pós-64, no Brasil.

Aos poucos, a atividade cultural e, mais especificamente, a atividade artística foi me envolvendo até chegar ao ponto em que eu decidi mudar do curso científico para o clássico. Esperavam que eu fosse engenheiro, mas contentaram-se com o advogado, que, além do médico, eram os três profissionais dignos naqueles tempos. Naquela época eu nem pensava em estudar Teatro. Interessante é que a professora de Psicologia aplicou-nos um teste vocacional e eu, com medo de desembocar na Engenharia, tentei forçar as respostas para o lado do Direito. Fiquei um pouco confuso quando a professora leu os resultados; meu teste deu atividade artística, "na cabeça". Evidentemente, eu sonhava com o aspecto teatral do Direito, o Tribunal do Júri ou coisa que o valha.

Cursinho preparatório para a Faculdade de Direito em São Paulo. Descoberta eletrizante da capital, com sua vida cultural infinitamente superior à da minha cidade. As sessões da cinemateca, os concertos no “Teatro Municipal”, os bares perto da Maria Antonia e, principalmente, o “Teatro de Arena”. Eu já havia visto o “Teatro Oficina”, que levara Os Pequenos Burgueses, de Gorki, em Mogi das Cruzes, e havia ficado bastante impressionado. Entretanto, aquela forma de expressão teatral num palco semicircular, que incluía músicas e poemas, feita pelo jovem elenco do “Arena” de São Paulo, me deixou apaixonado. Eu e meus amigos do “Programa Estudantil” viramos "tietes" do Guarnieri, Lima Duarte, Marília Medalha, Davi José, Isaías Almada, etc. Ficamos tão entusiasmados que resolvemos fundar um grupo de teatro amador a que demos o nome deTeatro Experimental Mogiano”. Arena Conta Zumbi talvez tenha sido o maior choque cultural de toda a minha vida. Hoje eu entendo, perfeitamente, o motivo de tanto entusiasmo. Em primeiro lugar, o grupo paulistano fazia um teatro de contestação, que ia diretamente ao encontro de nossas ideologias e, mais importante, a fórmula “Arena” (que mais tarde iria desembocar no “Sistema Coringa”) era, além de criativa, muito mais fácil de ser assimilada por um grupo de jovens sem preparo aprofundado da técnica de interpretação. Bastava termos vozes afinadas, assumir os gestus das personagens, dizer as falas com entusiasmo e sinceridade (que por sinal não nos faltavam) e poderíamos fazer um teatro semelhante, levando-se em conta as proporções, ao que de melhor se produzia, cenicamente no país.

Arregaçamos as mangas e trabalhamos entusiasmados. Antecipando-se, por dois ou três anos, ao próprio Arena, um dos componentes do grupo escreveu, à maneira de “Zumbi”, uma peça sobre Tiradentes, que recebeu o título de Em Tempo de Inconfidência. Como ator, lembro-me de que ganhava muitas das falas em virtude da minha voz, que, segundo meus amigos, era muita boa.

Estávamos no ano de 1965. Alguns colegas, imaginem, foram presos dentro da sala de aula do curso colegial. Depois de todo o esforço, a peça, pronta para estrear, foi proibida integralmente, inclusive o título. Acredito hoje que tal proibição radical deve ter sido feita a “pedido” de algum político local; afinal, ela não era assim tão subversiva, penso eu.

Muito jovens para perdermos o entusiasmo, unimos nossas forças e, pouco depois de um mês (entre concepção e ensaios), estreamos, para uma platéia lotada com os jovens e famílias da cidade, um musical chamado Tem Poesia e Bossa. Tratava-se de uma colagem feita com poemas, músicas e trechos de Arena Conta Zumbi. Aprendemos a nossa lição e não submetemos o show à censura. O público adorou e tudo ficou por isso mesmo.

Eu recitava poemas, cantava e, nos trechos do “Zumbi”, dizia as falas do ator Lima Duarte, bem ao seu estilo, o que, aliás, me valeu o cognome de "seu Lima" por um par de anos.

Seguiram-se outros shows, de que tenho vagas lembranças. Do meu desempenho, tecnicamente falando (se é que eu posso falar assim), só me lembro de muita sinceridade, voz forte e um olhar descarado para a platéia, como se eu falasse para cada um dos espectadores. Aliás, essa é uma das lembranças mais vivas, mesmo nos ensaios. Eu tinha também uma estranha mania de ir observar meus colegas de cena, dos bastidores ou da platéia, assim que terminava alguma fala. Recordo-me de que alguns colegas chamavam-me a atenção sobre essa minha fria mania de olhar para a platéia ou de me deslocar para assistir ao desempenho deles. Isso era uma espécie de pecado teatral num grupo onde, por exemplo, o choro verdadeiro era aplaudido em cena aberta. Interessante, a esse respeito, é que nós nunca tivemos diretores de cena. Combinávamos as marcas e cada um "virava-se" como podia. Mudamos nossa prática quando o compositor Fernando Lona veio a Mogi para fazer um show em conjunto com nosso grupo. Ele e Geraldo Vandré acabavam de vencer um “Festival de Música Popular” com a música Porta Estandarte. Devido à grande responsabilidade do evento, somada ao fato de que aconteceriam apenas dois ensaios, sentimos a necessidade de alguma organização. Talvez em virtude daquela mania de observar os colegas em cena, nomearam-me diretor. Aquilo, à primeira vista, me pareceu até um castigo; entretanto, logo, à segunda vista, me entusiasmei. Fiz o que pude durante os ensaios. Para falar francamente, não me lembro se fiz qualquer coisa. O espetáculo, entretanto, estreou sem maiores deslizes. No dia seguinte, alguns componentes do grupo me disseram que haviam gostado da minha coordenação... E foi assim, dessa maneira seca, sem nenhuma poesia ou golpe dramático, que eu passei a ensaiar atores e a dirigir espetáculos. Esse fato iria decidir o rumo da minha vida e, sem ele, talvez hoje eu não estivesse escrevendo este memorial.

Todos concordávamos que era necessário ensaiar um texto completo, uma peça boa, com personagens bem desenvolvidos, a fim de que pudéssemos dar um salto qualitativo em nosso processo grupal. Entretanto, o que montar? A indicação veio do que chamávamos a "inteligência" do grupo, alguns companheiros dos tempos do “Programa Estudantil” e que, naquele momento, eram influentes líderes do movimento estudantil em São Paulo. Entristeço-me em pensar que dois deles, Antonio Benetazzo e Sérgio Corrêa, no auge da juventude, foram assassinados pelos institutos de repressão.

Caiu-me nas mãos um volume, escrito em Português de Portugal (as nossas traduções sempre são muito demoradas), contendo três peças de um dramaturgo alemão de nome Bertolt Brecht. Segundo aqueles companheiros, a peça que mais refletia a sociedade brasileira, naquele momento, era a segunda no índice. Abri o livro; a primeira chamava-se O Julgamento de Luculus, a terceira Baal, e a segunda, que deveríamos encenar, tinha o que me pareceu, na época, um estranho nome: A Exceção e a Regra.

Fui passar as férias no litoral e coloquei o livro na mala. Li a peça junto com alguns amigos músicos, que também estavam por lá e que logo começaram a compor canções para algumas cenas. Eu ia, invariavelmente, à praia, lia o texto e, solitário, imaginava como gostaria que as cenas se concretizassem no palco. Virava as páginas e ia desenhando esboços de marcações. Cada ator eu representava por uma bolinha desenhada. "Bolei" que os atores fariam os cenários com os seus corpos. Eles deveriam ser o deserto, a cabana, o rio, etc. Pensei em um coro, cúmplice da platéia. Decidi que tudo isso aconteceria num palco nu, com luz branca muito forte e com música ao vivo feita por atabaque, violão e flauta. Imaginei e, depois, concretizei tudo isso, ensaiando em clubes, salas de visitas, garagens e ruas. Eu nunca tinha lido uma linha sobre as teorias de Brecht. Tenho certeza de que meu encontro com Brecht deu-se de maneira bem "brasileira", através da deglutição que fizeram dele as encenações do “Teatro de Arena”. Imaginei muitas coisas, só não imaginei o sucesso que a nossa montagem iria fazer.

Paralelamente a tudo isso, eu ingressara na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica e, para me manter, morando em uma pensão em São Paulo, comecei a trabalhar na Caixa Econômica Estadual. Tenho pouco a dizer deste emprego, a não ser que não era nada estimulante. Ali eu fazia lançamento em fichas de um arquivo que, quando cheguei, já estava atrasado dez anos. Eu, a todo custo, tentava apenas manter o atraso e fazia, para os funcionários, um "jornaleco" cultural. A Faculdade de Direito valia pelos interessantes contatos e amizades. Lembro-me de que eram meus amigos os dois principais líderes estudantis da época: José Dirceu e Luís Travassos. Os professores eram, ou acabaram por ser, muito famosos: o jurista Washington de Barros Monteiro, Marins de Oliveira, que se tornaria Secretário Estadual da Segurança Pública, Manoel Ferreira Gonçalves, vice-governador do Estado de São Paulo e, o mais conhecido de todos, o ex-governador Franco Montoro. Eu, entretanto, sentava-me nos fundos da sala e apenas lia peças de teatro durante as aulas, ministradas, provavelmente, com muita competência por aqueles mestres. A Faculdade, enfim, era uma obrigação de que eu me desincumbia satisfatoriamente.

A direção de A Exceção e a Regra obteve um sucesso para o qual um jovem de dezenove anos não estava preparado. Dentro de um movimento amador que, naqueles tempos, era muito rico e intenso, o “Teatro Experimental Mogiano”, com tal montagem, acabou por se tornar um grupo dos mais respeitados. A minha direção obteve o prêmio maior em todos os certames de que participamos: na capital, em São Carlos, na final estadual e no festival promovido pela A.T.A. do Rio de Janeiro. Paschoal Carlos Magno enviou-nos um telegrama, bem ao seu estilo, exigindo A Exceção e a Regra no Festival Nacional de Teatro Estudantil, que se realizaria no Rio de Janeiro.

Fomos também convidados a fazer uma curta temporada no teatro Maria Della Costa e ali, qual não foi minha surpresa quando, na platéia, sentaram-se, além do governador Laudo Natel, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Os dois últimos, meus principais ídolos na época, assistiram à minha primeira montagem... Era dose para me deixar completamente eufórico.

Incomodava-me, contudo, uma ignorância total a respeito do Teatro. Perguntavam-me sobre o processo de direção e eu só podia responder superficialmente ou através de evasivas. No Rio de Janeiro, um repórter radiofônico indagou-me se eu havia aprendido técnicas de interpretação no Actors' Studio e aquilo me soou como um palavrão. Hoje, noto que o próprio repórter mal sabia do que estava falando.

A interpretação dos atores era, de certa maneira, distanciada, pois em virtude do meu despreparo para dirigi-los, eles acabaram por representar a si mesmos, incorporando características básicas de cada personagem.

Cada um deles "virou-se" como pôde. Toda a minha direção concentrou-se nas idéias esquemáticas que concebi desenhando nas areias do litoral. Eu pensava comigo mesmo que o teatro não podia ser esta coisa tão simples... E não podia mesmo.

As conseqüências das minhas contradições aconteceriam mais cedo do que eu podia imaginar. Dar-se-iam na minha segunda direção, quando encenei O Drama de Canudos, um texto escrito por Milton Feliciano de Oliveira, o mesmo cuja peça sobre Tiradentes fora proibida. A concepção do autor era, a meu ver, muito interessante e pertinente. A Guerra de Canudos foi escrita num tom de tragédia, ao estilo grego, com coro e tudo o mais.

As cenas de grandes monólogos, outras de violência e algumas de lirismo exagerado exigiam dos atores um desempenho compatível e de dificílima execução.

Confesso que sofri como poucas vezes na vida. Eu pedia, gritava, exigia, espelhava e implorava para que os atores fizessem o que eu imaginava das cenas, que por sinal eram lindas, plasticamente falando. Havia uma procissão de beatos que entrava pela platéia, muitas máscaras criativas e um sol maravilhoso projetado na rotunda.

Eu, contudo, acabava de descobrir na prática, no sofrimento, na ousadia irreverente e irresponsável de minha juventude, que o teatro não era quase nada sem o trabalho aprofundado do ator. O espetáculo até que não se constituiu em um desastre total, mas da platéia eu entendia que a técnica de interpretação deveria ser algo muito complexo para ser esquematizado, tão pobremente, por aquelas bolinhas desenhadas em um papel...

4. O Estudo de Teatro (1991)

O Prêmio Governador do Estado incluía uma bolsa para estudar teatro durante quatro anos. Pena não existir mais tal incentivo para os jovens do nosso teatro. Para se ter uma idéia do que a bolsa significava, a quantia mensal, a mim destinada, superava em muito o que eu ganhava como funcionário da Caixa Econômica, para a qual, de bom grado, dei adeus. Novos e belos horizontes abertos, mais que depressa corri até a Rua Tiradentes, onde funcionava a Escola de Arte Dramática de São Paulo. Atendeu-me uma senhora, chamada Maria Thereza Vargas, hoje grande pesquisadora do Teatro Brasileiro, que me frustrou ao dizer que a E.A.D. jamais havia formado diretores. Aconselhou-me a procurar uma possível escola, que provavelmente seria fundada, no âmbito da Universidade de São Paulo, chamada Escola de Comunicações Culturais.

Fiz um vestibular às pressas e acabei por conseguir ser um dos alunos da primeira turma daquela faculdade que nós, hoje, chamamos de ECA.

No primeiro ano básico, senti uma certa estranheza no fato de assistir às aulas junto com futuros jornalistas, relações públicas, cineastas, bibliotecários, etc.

Eram aulas de informação geral como: Línguas, Cultura Brasileira, Teoria de Comunicação e Estética. Éramos todos, alunos e professores, cobaias numa escola fundada às pressas. Hoje, como professor, imagino o que não devem ter passado aqueles meus queridos mestres dando aulas numa faculdade que funcionava, sem que seus objetivos tivessem sido definidos. Alfredo Mesquita concedeu-me, aliás, uma entrevista, pouco antes do seu falecimento, quando me segredou que jamais assistira a tamanho disparate como a implantação daquela unidade acadêmica.

Acho que, apesar de tudo, o básico foi proveitoso para mim, eu que procurava conhecimentos de cuja falta me ressentia durante a fase amadora.

Lembro-me, particularmente, das polêmicas aulas de Estética ministradas pela professora Lupe Cotrim, do professor Virgílio Noya Pinto (está aposentado), fazendo-nos interpretar a História, dos professores Nelly Camargo, Dino Preti, Isidoro Blikstein, dentre tantos.

A turma grande dividia-se nas aulas de Introdução à especialidade escolhida. Éramos, mais ou menos, uma dezena de alunos assistindo às aulas de teatro do professor Alfredo Mesquita. Ele nos contava, de maneira deliciosa, a arte cênica: os autores mais importantes, os diretores, os cenógrafos, sem descartar algumas "fofocas" sobre os bastidores do Teatro Brasileiro e seu incrível encontro com Jean Genet, em Paris.

Para a nossa turma, tudo era novidade e eu sentia ali um grupo muito forte, principalmente nos debates. Recordo-me de uma loira muito alta chamada Ingrid Dormien, uma senhora erudita, a Miriam Garcia Mendes, um rapaz de olhos muito vivos chamado José Possi, a suave Marina Picolli e outros que acabaram por desistir do curso.

Logo descobri que ali também eu não teria o curso de direção teatral e antevi que faria uma escola eminentemente teórica.

Sem maiores desenganos, eu e minha turma aproveitamos o que foi possível e o que pudemos daquele curso, cuja excelência, aos poucos, descobrimos.

Desfilaram pela nossa sala os mais incríveis e competentes mestres. Sábato Magaldi nos embasbacava com o seu conhecimento e a sua maneira apaixonada de transmitir a História do Teatro. Clóvis Garcia, sempre nos apoiando pedagogicamente, enquanto nos revelava as possibilidades do espaço cênico. Miroel Silveira nos ensinava o Teatro Brasileiro que ajudou a construir nos tempos modernos. Na cadeira de Dramaturgia, grandes dramaturgos brasileiros: o saudoso Jorge de Andrade, Lauro César Muniz e Renata Pallottini, que quase descobriu em mim um dramaturgo, ajudando-me a escrever uma peça - Marcelo e Marcela -, encenada por Alberto Guzik na Escola de Arte Dramática de São Paulo. A elegância e a erudição do decano de nossos críticos, o professor Décio de Almeida Prado. Anatol Rosenfeld, um dos poucos cujas aulas transcritas transformavam-se, sem nada acrescentar, em brilhantes artigos. Jacó Guinsburg, que nos inflamava a consciência a ponto de discutirmos, por horas e horas, os problemas da estética teatral. O amigo Jacó que, naquele momento, eu mal sabia, seria o meu tutor acadêmico e me ajudaria a escrever dois livros sobre o Teatro Brasileiro.

Ao lado de tudo isso, dentro e fora da Universidade, o movimento estudantil nos conscientizava a respeito das mudanças fundamentais por que precisava passar a nossa sociedade. Enchia-nos de coragem e de esperanças.

Amadurecíamos; cercava-nos, também, um teatro profissional dos mais criativos que o país já viu: o “Arena”, o “Oficina”, o Living Theatre, as experiências de Victor Garcia, etc.

Como aluno de crítica, eu acompanhava todo esse movimento e escrevia para a revista de teatro chamada Palco + Platéia. Desses escritos, destaco a cobertura completa do Festival Nacional de Teatro Amador de São José do Rio Preto, e uma entrevista com Cacilda Becker (não publicada), quando me deslumbrei com a sua disciplina e intuição no processo de composição da personagem “Estragon”, de Esperando Godot.

Nos primeiros anos do curso, tive problemas de redação, descobertos por Sábato Magaldi; ao término, a satisfação de ter sido minha crítica sobre O Interrogatório, de Peter Weiss, escolhida pelo próprio Sábato como exemplo a ser publicado no Jornal da Tarde.

Em resumo, posso dizer, sem qualquer sombra de dúvida, que sem a ECA eu não teria sido. Aprendi ali, juntamente com minhas experiências de direção teatral, muitas lições. Entendi que o teatro não deve ser dividido, compartimentado em teoria, prática ou educação.

Percebi que os grandes homens de teatro possuem discursos teóricos extremamente lúcidos a respeito de suas práticas. Senti que, sem os conceitos teóricos aprofundados, eu jamais poderia, no futuro, ensinar procedimentos metodológicos que levassem a práticas livres, conseqüentes e criativas.

Antevi que estava colhendo os elementos necessários para a função que hoje exerço. Decidi que poderia me dedicar a esta difícil, mas fascinante, tarefa de ajudar os atores.

O Curso de Direito ficava cada vez mais distante dos meus planos. Terminei-o mais por obrigação do que por satisfação. Minha família perdia um advogado e ganhava um homem de teatro.

5. A experiência no Ensino Fundamental (1991)

Em 1969, estando por findar o prazo de validade de minha bolsa de estudos, aceitei trabalhar provisoriamente como professor de Arte Dramática no Ginásio Industrial Presidente Vargas. Naquele tempo, um professor secundário podia, com seu salário, sustentar uma família. Era o que eu e minha atual mulher necessitávamos para nos amarmos em paz. No fim do ano me casei.

A experiência como professor de ginásio foi também interessante, não tanto pelas aulas de “teatro-educação”, que eram rotineiras, mas sim pelo fato de que o diretor da escola resolvera incentivar a formação de um grupo teatral que contaria com a presença dos alunos mais adiantados. Rapidamente, tive que desenvolver procedimentos metodológicos que fizessem com que os garotos e garotas, na faixa dos quinze aos dezessete anos, se mantivessem no palco representando personagens. No início, algumas máscaras simples, mas que acabaram por evoluir para escolhas bem mais complexas.

Devorei e apliquei, durante os anos em que ministrei aulas ali, uma espécie de adaptação do “Sistema Stanislavski”, que hoje penso ser muito próxima da técnica de “Viola Spolin”. Eu fazia e refazia as propostas do mestre russo até conseguir com que os exercícios atingissem a essência do jogo teatral puro, de maneira que atores pudessem improvisar as cenas das peças sem se prenderem em demasia ao texto dramático.

Confesso que devo ter cometido alguns pequenos crimes em nome de Stanislavski, mas confesso, também, que alguns resultados apareceram, como se pode perceber pelo repertório que conseguimos apresentar ao público da cidade: Somos Todos do Jardim da Infância, de Domingos de Oliveira (1969); O Santo Milagroso, de Lauro César Muniz (1970); Conferência Ilustrada, com trechos de Ésquilo, Eurípides; Teatro Medieval Anônimo, Shakespeare, Lorca, Brecht, Strindberg e Ionesco (1970); O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1971) e As Casadas Solteiras, de Martins Pena (1972); além dos infantis Pluft, o Fantasminha e A bruxinha que era Boa, de Maria Clara Machado.

Dos dez ou doze alunos do “Teatro do Ginásio Industrial”, dois conseguiram passar pelo difícil exame de admissão da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Um deles não concluiu o curso e o outro é, hoje, um ator profissional, chama-se Flávio Dias.

6. A Carreira Universitária – 1ª Fase (1991).

Em 1970, formei-me em ambas as Faculdades e continuei lecionando no Ginásio Industrial, aprofundando ali procedimentos que facilitassem o trabalho de atores iniciantes. Em virtude, contudo, da instalação do curso de Direção Teatral, alguém do setor de Artes Cênicas (acho que foi o professor Clóvis Garcia) perguntou-me se eu tinha interesse na carreira universitária. Credito tão honroso convite ao fato de ter tido uma formação sistemática, em nível universitário, na própria escola, aliada a uma certa experiência prática desenvolvida desde os dezessete anos. Confesso que não pensei muito. Eu não via no teatro comercial algo que me entusiasmasse. Ao contrário, depois da explosão criativa da década de sessenta, notei algumas montagens apressadas, que mais pareciam atos de sobrevivência puramente financeira. Eu acreditava, isto sim, no desenvolvimento de um trabalho de teatro grupal que, naquele momento institucional, era impossível de se concretizar, principalmente em termos profissionais. Por outro lado, eu imaginava, e ainda imagino, a Universidade como um futuro centro de pesquisas cênicas criativas, o que, certamente, faria de uma carreira acadêmica um caminho dos mais promissores em direção aos meus propósitos particulares. A abertura recente do Curso de Direção era um sinal inequívoco de que minhas ponderações eram corretas.

Entrei para a Universidade de São Paulo em 1971, como auxiliar de ensino, com carga de trabalho de doze horas semanais. Lembro-me de que, até então, ninguém se aventurara a encenar algum espetáculo no âmbito da Escola. Hoje tenho a sensação de que a minha carreira, dentro da ECA, confundiu-se com o próprio desenvolvimento do Setor de Teatro, futuro CAC. Foi aos poucos que o nosso departamento conseguiu ser uma escola de teatro mais completa e foi também, lentamente, às custas de muitos ensaios e erros, que eu consegui, penso, transformar-me em um professor mais seguro e consciente.

Durante os primeiros anos, programei cursos totalmente teóricos. Lembro-me de que na graduação tinha visto, apenas de maneira superficial, o trabalho dos grandes encenadores. Em virtude dos meus interesses pessoais, acabei por estudar, por conta própria, suas propostas cênicas, de que, na época de formado, eu tinha um conhecimento considerável. Tais conhecimentos, contudo, eram insuficientes para a empreitada que me cabia: a de ministrar um curso para alunos que, em grande parte, haviam freqüentado junto comigo algumas aulas da graduação. Lembro-me de que passava noites, e até madrugadas, lendo, em língua estrangeira, os livros que usava como bibliografia. Recordo-me de que levava para as aulas pilhas de livros, como se fossem âncoras para um conhecimento ainda não totalmente assimilado. Ainda vejo, numa bela manhã, o olhar sorridente e compreensivo do professor Sábato Magaldi, como se demonstrasse ter passado, algum dia, por situação semelhante.

Acho que iniciei corretamente e como, na minha opinião, deveriam começar a trabalhar os auxiliares de ensino, isto é, funcionando à maneira de um aluno mais adiantado, coordenando grupos de estudos, através de seminários de que, entretanto, eu participava ostensivamente.

Discutíamos animadamente os Meininger, Gordon Craig, Stanislavski, Antoine, Meyerhold, Brecht, Artaud, o Cartel francês e até Grotowski. Lembro-me de que a mais feliz descoberta, naquela época, foi o livro A Obra de Arte Viva, de Adolphe Appia.

Quanto mais eu estudava e discutia com meus alunos, mais claro se tornava para mim que os principais movimentos cênicos do teatro contemporâneo deram-se a partir de novas propostas de interpretação, de um novo ator. Ao mesmo tempo, eu percebia que os alunos da ECA, em sua maioria, eram muito inteligentes e criativos, mas faltava-lhes a prática do ensaiador de atores. Repetia-se o que acontecera comigo nos tempos de “Teatro Experimental Mogiano”: havia algumas idéias brilhantes que não se concretizariam sem atores devidamente ensaiados. Paralelamente aos estudos teóricos, passei a solicitar aos alunos de direção que fizessem cenas centradas no trabalho do ator e que, para tal, usassem a metodologia de Stanislavski. Finalmente, se bem que ainda de maneira tímida, iniciava-se uma atividade prática dentro do departamento.

Lembro-me, em particular, de dois exercícios interessantes: um trecho de uma peça de Dias Gomes, feito pelo aluno Cacá Rosset, e algumas cenas de Pedreira das Almas, de Jorge Andrade, encenadas pelo aluno Iacov Hilel em uma casa colonial.

Nesta época passei a ser, constantemente, convidado para participar de Comissões Julgadoras das fases finais dos Festivais de Teatro Amador, em que, além da tarefa específica, pediam-me para ministrar oficinas práticas e conferências sobre os encenadores. Participei das fases finais de festivais estaduais em Santos (1970), São Carlos (1971), Presidente Prudente (1973) e novamente São Carlos (1976).

Eram tempos de tão grande humildade por parte dos os professores, que resolveram se sentar, novamente, nos bancos escolares e estudar pedagogias específicas para melhorar seu desempenho didático no terceiro grau. Recordo-me sentado em uma sala de aula ao lado do saudoso Paulo Emílio Salles Gomes (era um curso para os professores do Departamento de Cinema, Televisão e Teatro), o qual, levando muito a sério as discussões, explicava a nós, mais jovens, a máxima de que "quanto mais conheço, mais tenho dúvidas".

Até 1971, penso que não tínhamos professores doutores no Setor de Teatro do CTR (Décio de Almeida Prado pertencia ao Instituto de Letras), porque tivemos que importar um professor para que se iniciassem os cursos de pós-graduação. Inscrevi-me, com um projeto que prometia estudar o trabalho do ator e fui aceito na Pós-Graduação do futuro CAC, pelo professor Dr. Fredric M. Litto, de origem norte-americana. Eu, que já havia pertencido à primeira turma da graduação, agora estava, também, na primeira turma de pós-graduação. O professor norte-americano fez-me ver que eu não tinha a mínima idéia do que significava uma metodologia científica de pesquisa e, a duras penas, consegui escrever, ao longo do semestre, minha primeira monografia, intitulada O Aspecto Exterior da Obra de Stanislavski.

No final de 1972, após algumas divergências metodológicas com meu orientador, consegui transferir-me para a tutela do professor Dr. Jacó Guinsburg, que acabaria sendo o responsável direto por tudo o que consegui produzir na área teórica. Credito, aliás, a esse emérito mestre a minha permanência, a qual por algum tempo andou periclitante na carreira Universitária e, portanto, no Departamento de Artes Cênicas da ECA, em virtude de minhas dúvidas, desânimo pessoal e descrença nos caminhos da Universidade. Suas palavras de estímulo, por vezes duras, coadjuvadas pelas dos professores Clóvis Garcia e Miroel Silveira, fizeram com que eu renovasse a segurança em minha pessoa e em minhas esperanças no ensino Universitário. Fizeram-me ver que a época de incertezas, aprofundadas por uma direção fascista da ECA, seria passageira.

Fazer pesquisa no Brasil é muito complicado como todos nós sabemos. Consegui, a muito custo, um turno de vinte e quatro horas, o que, na época e ainda hoje, não dá para um professor ter uma vida digna. A partir de 1974, tive que trocar o Ginásio Industrial por empregos em faculdades particulares que, se me deram um certo alívio financeiro, fizeram do meu curso de pós-graduação, uma verdadeira epopéia. Freqüentemente, usava as madrugadas e fins-de-semana para preparar meus seminários e monografias.

Por outro lado, no âmbito das faculdades particulares, abriam-se possibilidades para a formação de grupos teatrais, totalmente subvencionados pelas mesmas. Foi assim que, em 1975, eu passei a dirigir um grupo de rapazes e moças muito dedicados, o que resultou em algumas montagens que muito me gratificaram.

Mais ou menos na mesma época, iniciou-se o curso de Interpretação no Setor de Teatro do CTR da ECA (futuro Departamento de Artes Cênicas, o CAC) e eu passei a fazer parte do corpo de professores responsáveis pela matéria.

Seguiu-se aí uma longa fase das mais produtivas, artisticamente falando, na medida em que eu pensava que fazer uma montagem completa de um espetáculo significava a aprendizagem viva e eficiente da técnica de interpretação.

Os alunos também aceitaram, de bom grado, a proposta, visto que muitos deles (em virtude da ausência de um vestibular específico) tinham pouca experiência de teatro e uma certa ansiedade de subir ao palco.

Da minha parte, descobri que possuía uma certa facilidade, através de laboratórios que aos poucos elaborava, de "tirar" (essa era a expressão que eu usava) dos atores desempenhos razoavelmente fortes. Como já afirmei, usei e abusei desse processo durante uma década, tanto nas aulas dentro do Setor de Teatro, como nos grupos universitários que coordenei. Foi uma fase em que, na sala de aula, eu me sentia em primeiro lugar um artista, e um professor secundariamente.

Tenho a certeza de que fui o professor que mais dirigiu espetáculos dentro do Setor de Teatro do CTR. Somando-se as montagens que realizei fora da escola com as do grupo universitário, cheguei a encenar quase duas peças por ano, além de orientar várias direções de alunos.

Com o grupo universitário, portanto fora da ECA, dirigi: Primeira tentativa, de minha autoria (1976); Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues (1977); Galileu Galilei, de Bertolt Brecht (1979) e A Prova de Fogo de Consuelo de Castro (1985).

No Setor de Teatro da ECA, encenei: O Porco Ensangüentado, de Consuelo de Castro (1976); Woyzeck, de Büchner (1978); Curso de Amor, de A.J. Gurney (1980); Quem Roubou meu Anabela? de Ivo Bender (1980); A Nossa Cara, dramatologia baseada em Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1981); Zoo Story, de Edward Albee (1982); A Noite Alemã, dramatologia baseada em Terrores e Misérias do III Reich, de Bertolt Brecht (1984); Tragédias Cariocas, dramatologia baseada em textos de Nelson Rodrigues (1985); O Amor dos Quatro Coronéis, de Peter Ustinov (1986); A Última Gravação, de Samuel Beckett (l987); O Curso de Amor, de A.J. Gurney (1987).

De todas essas montagens, destaco, além de Galileu Galilei, que é sempre um desafio para qualquer diretor, os espetáculos dramatológicos. Esse processo, através do qual um novo texto surge baseado nas improvisações dos atores, mostrou-se bastante fértil no que diz respeito ao ensino de teatro e muito rico como proposta estética. Penso, no futuro, em horários extracurriculares, retomar essa experiência no Departamento de Artes Cênicas (CAC).

Assumi, ainda como Auxiliar de Ensino, por um ou dois anos, importante tarefa quando fui Presidente da Comissão Coordenadora dos Cursos de Teatro, o que corresponde hoje ao cargo de chefe de Departamento.

A pós-graduação não tinha condições de proporcionar pesquisas aprofundadas a respeito de práticas teatrais, tanto por falta de estrutura material (espaço adequado, atores, etc.), como de professores pesquisadores que realizassem tais pesquisas juntamente com seus orientandos.

Novamente, aproveitei-me da capacidade teórica do curso, agora de maneira bem mais aprofundada e conseqüente.

Não tendo ainda condições de realizar uma pesquisa de procedimentos metodológicos a respeito da práxis teatral, resolvi estudar o caminho de um grupo que, a meu ver, realizou, e de maneira exemplar, tal práxis: o “Teatro Oficina”.

As orientações acadêmicas, feitas pelo professor Jacó Guinsburg, foi ao mesmo tempo incentivadora e desafiadora.

Quando comentei com alguns colegas sobre o meu intento de pesquisar sobre o “Teatro Oficina”, aconselharam-me a enfocar a principal montagem ou alguma das fases do referido grupo, para a concretização da dissertação de mestrado.

O professor Jacó Guinsburg, entretanto, foi radical. Eu deveria esgotar o tema. O projeto não somente enfocaria toda a história do grupo, como também procuraria analisar criticamente cada uma das montagens e, ainda, através de uma reflexão estética, concluir se o grupo paulista havia cristalizado, em sua trajetória, uma linguagem teatral própria.

Em outras palavras, o professor amigo me incumbia de preencher uma lacuna histórica e crítica a respeito de uma das fases mais ricas e polêmicas do teatro brasileiro. Confesso que estremeci, mas confesso também que comecei a sonhar, sonho esse que, como já disse, para se concretizar, tirou-me muitas noites de sono.

Em 1979, estava eu diante de uma banca composta pelos professores Clóvis Garcia, Décio de Almeida Prado (contar a história da nota do Décio) e meu orientador, defendendo uma realidade palpável de quase quinhentas páginas.

Faltaram, nesta banca, professores como Renata Pallottini, Sábato Magaldi, Miroel Silveira etc., pois a dissertação significava parte da gratidão do discípulo que eles haviam ajudado a lapidar.

José Celso Martinez Correa, não sei como, teve acesso a uma cópia e disse-me, durante um debate no “Teatro de Arena”, que eu havia conseguido compreender exatamente o seu intento artístico durante a aventura do “Teatro Oficina”. Fernando Peixoto, naquele tempo nosso colega no Setor de Teatro, disse-me o mesmo. Somente por essas duas opiniões e eu já me sentiria gratificado com o trabalho.

Um ano depois, transformei a dissertação em um livro que foi publicado pela Editora Perspectiva, com o título de OFICINA: DO TEATRO AO TE-ATO.

Além de outras críticas favoráveis, ainda hoje me emociono quando releio o que disse, do livro, o crítico Sábato Magaldi:

"Pode-se afirmar que Oficina: do Teatro ao Te-Ato é fruto dos cursos de pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o que os justifica e lhes assegura real utilidade. Livros como o de Armando Sérgio da Silva, aplicados aos numerosos aspectos da realidade cênica brasileira, permitirão que se escreva, um dia, uma verdadeira história do nosso teatro".

Algum tempo depois, as conclusões, de parceria com o professor Jacó Guinsburg, foram publicadas na Europa, numa revista portuguesa chamada Nova Renascença.

Ainda mestre, portanto sem condições legais para tal, ministrei na pós-graduação um curso sobre o livro, sob a tutela do professor Jacó Guinsburg. Foram muitos os debates de que participei, na medida em que o Teatro Oficina, no início dos anos oitenta, estava sendo muito reavaliado. Destaco apenas a coordenação de um evento chamado “USYNA”, na UNICAMP (1987), em que onde tive o prazer de debater com grande parte do antigo elenco do “Oficina”.

Meu primeiro livro seria também o responsável pela minha primeira participação em congressos no exterior. Um pesquisador francês, Richard Roux, amante do teatro brasileiro, divulgou Oficina: do Teatro ao Te-Ato na Universidade de Marseille, da cidade de Aix-en-Provence. Em 1985, recebi um convite formal para uma comunicação no colóquio Le Théâtre sous la Contrainte. A Universidade de Mogi das Cruzes, gentilmente, providenciou a minha passagem aérea e lá, na França, falei durante aproximadamente uma hora sobre o tema: A Irreverência do Teatro Paulista contra a Opressão do Regime Brasileiro nos Anos 60. Terminada a exposição, tive a satisfação de ver Monsieur Claude-Henri Frèches, Professeur Emérite à L'Université de Provence, solicitar que os conferencistas de todos os países se levantassem e aplaudissem a coragem com que o Teatro Brasileiro havia enfrentado a opressão naqueles tempos sombrios. Dois anos mais tarde, minha palestra, foi publicada no livro resultante dos anais daquele congresso.

7.O Intermezzo Administrativo (1991)

Em 1983, recebi um convite que entendi como irrecusável, após alguma reflexão. Com a tomada do poder pelas oposições em quase todos os estados e municípios, o prefeito eleito em Mogi das Cruzes convidou-me para ser o Secretário de Cultura.

A cidade do meu coração, onde sempre residi, sempre dominada por Prefeitos autoritários e pouco afeitos às atividades culturais, estagnara-se neste aspecto, praticamente desde os anos 60. Para se ter uma idéia, não havia sequer um conjunto, em qualquer das áreas de expressão artística, produzindo espetáculos ou eventos.

Lembrei–me de Alfredo Mesquita, quando era seu aluno: “Vocês que vem estudar em São Paulo, devem levar um pouco dessa experiência para a cidade onde vocês vivem”.

Eu e a equipe que formei mergulhamos no trabalho de articulação, incentivando as mais diversas áreas culturais e seria, aqui, muito extenso o relato completo do trabalho frente à Secretaria de Cultura. Lembro-me de que foi entregue ao meu sucessor um relatório de doze volumes, com cerca de quinhentas páginas cada um, sobre os eventos e cursos que realizamos na área cultural. Na área de teatro, especificamente, além da promoção de festivais em níveis local, estadual e nacional, proporcionamos aos amadores da cidade inúmeras oficinas, que contaram com a coordenação de professores como Clóvis Garcia, Antonio Januzzeli, dentre outros. Deixamos a pasta, em 1988, com vinte e três grupos de teatro amador em plena atividade.

Das referências que recebi pelo trabalho, destaco as seguintes: Votos de Congratulações (1984 e 1985), dados pela unanimidade dos Vereadores da Câmara Municipal; Destaque em Artes (1984), prêmio oferecido pelo jornal da cidade; Personalidade Cultural (1985), prêmio conferido pelo tradicional Centro Mello Freire de Cultura, e Destaque Cultural (1988), troféu de gratidão oferecido pela Federação de Teatro Amador.

Antes de sair da “Secretaria”, desapropriei o “Casarão do Carmo” - aquele local onde tinha passado os dias de minha infância, junto de minha mãe bibliotecária, e ali instalei um centro cultural.

Ainda como Secretário Municipal de Cultura, recebi, de passagem pelo sul da França, um convite de Monsieur Paul Lombard, prefeito de Martigues, para uma conferência. Falei, para uma platéia composta pelos vereadores e autoridades culturais, sobre o tema: Uma Experiência de Administração Cultural na Grande São Paulo, enquanto eram projetados slides sobre o meu trabalho. O fato constituiu-se de certa relevância, na medida em que foi destaque, com fotos, na primeira página do jornal Le Provençal, que circula em todo o sul da França.

Durante esses seis anos, minha vida na ECA resumiu-se a dar aulas e a escrever uma tese de doutorado.

8. A Carreira Universitária - 2ª Fase (1991).

Se minha dissertação de mestrado foi um tributo à criatividade, aos artistas que me haviam contagiado nos meus tempos de juventude, a tese de doutoramento configurou-se a partir de outras preocupações.

Se eu me dedicava ao ensino, necessitava estudar, para entender melhor, aquela que havia elaborado a mais completa e conseqüente pedagogia para atores do país. Aquela a quem eu, sem pestanejar, primeiro procurei quando deveria usufruir minha bolsa de estudos - A Escola de Arte Dramática de São Paulo. Sempre orientado pela competência do professor Jacó Guinsburg, durante seis anos pesquisei a instituição, até o esgotamento de suas principais fontes, formais e informais.

Finalmente, em meados de 1987, pronta a tese, com o título de A EAD do Dr. Alfredo: Uma Oficina de Atores, defendi-a perante uma banca composta por: Décio de Almeida Prado, Renata Pallottini, Clóvis Garcia, Dilma de Mello e meu orientador.

Melhor banca teria sido, quase, impossível, pois Décio de Almeida Prado foi coadjuvante de Alfredo Mesquita na fundação da EAD, Renata Pallottini, ex-aluna, professora e diretora, Dilma de Mello, ex-aluna, Clóvis Garcia, seu recente diretor e Jacó Guinsburg também ali lecionara.

Além do título da publicação pela EDUSP e de uma nova volta à França, escrever sobre a EAD significou para mim o amadurecimento profissional. Percebi, através da análise dos ensinamentos da EAD, que eu estivera, durante todos esses anos, dividido entre o artista e o professor, dentro da sala de aula. Entendi, por exemplo, que Alfredo Mesquita havia abdicado de uma carreira de diretor teatral de sucesso, exatamente para proporcionar aos seus pupilos o referido "cartaz".

Antevi que somente poderia ensinar processos adequados de interpretação se afastasse de minhas aulas o artista, ansioso pela busca de resultados, para encontrar o professor cada vez mais consciente das etapas metodológicas pelas quais deveriam passar os alunos. Conformei-me com o fato de que necessitaria procurar outro horário para a sede de criação.

Mudei radicalmente o processo pedagógico de minhas aulas, o que me proporcionou um encontro renovado e fascinante com o ensino e, portanto, com o professor mais consciente que existia latente na minha pessoa.

Não precisei seguir o modelo da EAD, mais profissionalizante, mas procurei, a partir de então, desenvolver e aprofundar metodologias de ensino que objetivassem processos de desempenho teatral individuais, portanto, diferenciados. Mostrei, para o ator de nível universitário, a possibilidade de experienciar, através do estudo e da prática das várias propostas metodológicas de desempenho, seus pontos de convergência e de divergência. Vislumbrei, junto com os alunos, a hipótese de se formarem atores com consciência de seus processos metodológicos de interpretação. Estava aberto o caminho de pesquisa sobre o trabalho do ator.

Tendo cenas de Shakespeare como suporte dramático, acabamos alunos e professor, dentro das salas de interpretação, com a divisão entre o fazer e o pensar. Cada aluno-ator passou a ser o responsável intelectual por sua própria metodologia de trabalho prático, tamanha era a consciência do trabalho. Cada ator-aprendiz deveria ser capaz de defender, criticamente, a opção de processo criativo.

Tais procedimentos em sala de aula, os resultados apresentados ao público e os relatos que fiz sobre os mesmos, nas reuniões pedagógicas, levaram meus alunos e colegas do Departamento de Artes Cênicas a incentivarem-me na continuidade e aprofundamento dessa hipótese didática.

Fui aprovado, em 1991, no Concurso para a vaga de Professor efetivo de Interpretação Teatral junto ao Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

9. O Segundo Intermezzo Administrativo (1999)

Em 1993, voltei à Secretaria de Educação e Cultura de Mogi das Cruzes. Havia jurado que nunca mais voltaria a este tipo de cargo. Não sou político, no sentido estrito da palavra. Sequer votei no prefeito eleito que, mesmo sabendo disto, me convidou para a pasta. Expus ao prefeito que só aceitaria o cargo se pudéssemos construir um Centro Cultural completo. Planejava deixar a cidade equipada com um Centro Cultural / Escola de Arte Popular, onde os alunos “Escola de Arte Popular, cujos cursos seriam gratuitos e onde os alunos deveriam formar grupos de expressão artística, em contrapartida”) O prefeito concordou de imediato e, ao lado da promoção de eventos e de todo o cuidado com o ensino municipal, eu trabalhava ostensivamente para a consecução da idéia que me levara ao cargo. Após inúmeras reuniões com representantes das áreas artísticas da cidade, definimos as necessidades: um teatro grande e um espaço menor para experimentações, sala de cinema, biblioteca, salas de aula, etc.

Organizei um concurso nacional para o projeto arquitetônico e o vencedor foi justamente aquele que mais integrou sua idéia à cultura e tradição do município: possuía uma enorme torre, com um grande sino que badalaria anunciando os eventos (idéia que nasceu inspirada pelo complexo das Igrejas do Carmo do século XVI e preservadas pelo município); suas amplas janelas dariam para a Serra do Itapety e teria um pátio interno com locais para quermesses e festas folclóricas.

O primeiro prefeito morreu tragicamente de enfarte, dentro de um avião. O segundo assumiu o cargo e também encampou a idéia. Concorrência pública, final de mandato. Firma vencedora oferece um coquetel de lançamento. Marcado o início das obras. Pasmem! A firma vencedora avisa que não aceita o preço dado por ela mesma. Susto! Processos Jurídicos. Seis meses tentando, telefonando. A firma resolve não fazer a obra, mesmo após todas as ameaças jurídicas da Secretaria de Obras do município. Tempo expirado. Dinheiro comprometido com outras obras. Resultado final: eu me descubro com stress, pressão muito alta e o próximo prefeito prometendo, em campanha pública, a construção do Centro Cultural de Mogi das Cruzes. Saio frustrado e mais descrente da vida pública do que da primeira vez. Não entendo como, até hoje, os advogados da prefeitura não acionaram seriamente a construtora. Será que fui ingênuo? Provavelmente, sim.

10. A Carreira Universitária –

Continuação da 2ª Fase (1999)

Durante quase toda a década de noventa, mesmo no tempo em que fui Secretário de Educação e Cultura, colaborei no Conselho do Departamento de Artes Cênicas (CAC). Sempre tive uma participação discreta, entretanto ajudei a equacionar os problemas graves, sempre ligados à falta de verbas para a contratação de novos professores, quando outros se aposentavam, política suicida da Universidade de São Paulo. Destaco, dentre minhas atribuições, a tarefa de presidir uma Comissão para elaborar um relatório destinado à avaliação externa do Departamento de Artes Cênicas. Muito trabalho, para relacionar tanta atividade, tanta produção, mas ao final fomos recompensados com a nota máxima e elogios escritos pela Banca que nos examinou.

Orgulho-me, em especial, por dois convites: ter entrado na lista de pesquisadores que fornecem parecer aos processos de auxílio solicitados à FAPESP (Instituição que proporciona orgulho aos pesquisadores deste Estado, que me ajudou no projeto de Livre Docência e proporcionou Bolsas de Estudo a quase todos os meus orientandos) e ter sido convidado pela CAPES a participar da equipe de professores que avaliou, em Brasília, os Cursos de Pós-graduação na área de Artes. Apesar de não ter concordado totalmente com os critérios gerais de tal avaliação, ali muito aprendi e acredito que essa experiência será muito útil para os destinos futuros do nosso Departamento.

Afeito à área de experimentação prática, publiquei pouco nestes últimos anos. Destaco um livro que organizei, e para o qual contribuí com a Introdução e dois dos ensaios. O crédito é enfático, porque o realizei como homenagem àquele que foi meu principal tutor intelectual, meu eterno orientador o professor emérito da ECA-USP Jacó Guinsburg.

Trata-se de uma coletânea dos ensaios reflexivos que ele escreveu em colaboração com seus orientandos e que transita por quase todas as áreas da estética teatral. Denominei-o J. Guinsburg: Diálogos sobre teatro; foi editado pela EDUSP, em 1992. Transcrevo aqui as primeiras linhas da Introdução para, mais uma vez, homenageá-lo, neste Memorial:

“São doze horas e quarenta minutos. O Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes já está quase vazio, a não ser por um professor que, dentro de uma pequena sala, discute animadamente com algumas dezenas de jovens que o rodeiam. Discutem acaloradamente sem se importaram com o tempo e, muito menos, com o exíguo espaço de que dispõem. Um passante ocasional pensaria ser aquilo um fato ocasional; entretanto, quem normalmente por ali circula sabe tratar-se de uma tradição e diz simplesmente:” É uma aula de Estética Teatral, do professor Jacó Guinsburg, jamais ele consegue terminá-la no horário normal.”“.

É um orgulho, para todos nós que participamos, o fato de que neste momento, esgotada a primeira edição, preparo a segunda com a inclusão de novos artigos e, evidentemente, um novo prefácio já que agora o eterno mestre é Professor Emérito da Universidade de São Paulo.

As aulas, a investigação prática, o trabalho de orientação em pós-graduação de sete dissertações na década de noventa, o regime de trabalho apenas de turno completo e os compromissos de subsistência têm me afastado da criação artística. Neste aspecto, ressalto apenas uma produção e um plano para voltar à atividade da direção teatral, que sempre me fascinou.

Uma de minhas orientandas, Raquel Ornellas, trouxe uma colega para participar de meu curso, em 1996. Elas trabalharam com o tema das bruxas, em Macbeth de Shakespeare, e na falta de um texto que desse conta de todos os aspectos da abordagem, notei que começaram a se utilizar dos exercícios que eu formulava, para comporem o workshop do final do ano. O sucesso do exercício foi o responsável pela criação de um espetáculo, para o qual elas me convidaram a fazer a direção, denominado As irmãs do tempo. Há quatro anos, está em cartaz em salas alternativas da capital e é freqüentemente convidado a participar de importantes mostras nacionais (como o “Festival do Teatro Físico”, patrocinado pela Cultura Inglesa) e internacionais (como o “Festival Internacional de Londrina” e Fringe Theatre Festival no Canadá, onde fizeram quinze apresentações com salas lotadas.) Eis um pequeno trecho da crítica canadense:

“SISTERS OF THE SEASONS A VISUAL GRABBER” This is not a conventional piece of theatre but it sure is a welcome tonic to a day of dreary monologues on the fringe” (Kevin Prokosh)

A performance das Irmãs do Tempo sugeriu-me um caminho que pretendo, agora, trilhar. Todos os anos, pretendo escolher entre os exercícios dos alunos aqueles que mereçam uma continuidade espetacular e que combinem com minhas opções estéticas, para, em seguida, ampliá-los e encená-los.

Tenho participado constantemente de Bancas de Concursos de Mestrado e Doutorado, em particular de defesas que tratam de trabalhos de pesquisa de interpretação. Das mais de trinta bancas que participei destaco minha colaboração nas Bancas de Doutoramento de Yasuko Kussano, Antonio Dias Januzelli, Silvana Garcia, Rachel Fuser, Eduardo Tessari Coutinho, Sivia Fernandes Telesie, em especial a de Luís Otávio Burnier. Seu trabalho constitui-se numa das mais sérias pesquisas realizadas no Brasil a respeito de Interpretação Teatral. Burnier convidava-me sempre para participar de debates com a presença de seu grupo de pesquisa. Infelizmente, para nós que lidamos com este assunto, a morte levou tão cedo essa figura humana de competência ímpar no meio acadêmico e artístico.

Gosto muito de dar aulas. Quando eu era secretário, o Prefeito de Mogi das Cruzes disse ser fácil minha dispensa remunerada, já que ele era ligado politicamente ao Governador do Estado. De pronto, respondi que continuar dando aulas de Interpretação era a primeira exigência para aceitar o cargo. Depois, viriam as outras. O Prefeito estranhou, mas depois não se falou mais do assunto.

Na graduação, fui aprimorando minha sistematização, que apresentei como Tese de Livre Docência no ano de 1999. A diferença é que, antes da década de noventa, eu trabalhava somente com textos de Shakespeare, evidentemente pelos escritos do bardo proporcionarem elementos de qualidade para a pesquisa de interpretação. Entretanto, como eu desenvolvesse uma hipótese metodológica que deveria ser aplicada a qualquer estilo, achei melhor abrir o estímulo para qualquer texto, desde que comprovadamente de qualidade.

Nesta etapa, o principal destaque fica para minha tese de Livre Docência, que foi fruto de uma reflexão teórica – prática de toda a minha experiência como professor de Interpretação. Consegui verba da FAPESP que incluía as condições materiais, bolsas para alunos da graduação e, durante um ano, testei, documentei e escrevi um processo didático metodológico, usando como dramaturgia A Falecida, de Nelson Rodrigues. O trabalho chama-se “Interpretação: uma Metodologia da Essência”. Trata-se de um sistema desenvolvido para alunos-atores do terceiro grau, visando a criação de personagens teatrais. O sistema pressupõe a abordagem de qualquer personagem a partir de “Patamares” que envolvem ações, procedimentos e exercícios. O trabalho ainda é inédito, com expectativas de publicação em 2003.

Espero não ser aborrecida a inclusão aqui de um texto que, na minha opinião, é a imagem clara do meu dia a dia no CAC e de como este processo acontece e também, de como me sinto, como professor.

“ Manhã, como tantas outras no Departamento de Teatro da ECA. O local parece destoar da confusão barulhenta da cidade de São Paulo. Em uma sala, bastante comum, alguns jovens, em silêncio, preparam-se para uma espécie de aventura. Possuem um objetivo muito definido. Criar personagens, encontrar-se em ações humanas típicas, exemplares.

Eu me sento e os observo, absortos, em seus rituais de aquecimento físico e também me aqueço, aqueço o meu coração, a minha vocação.

Logo minha curiosidade e imaginação se agitam. Sinto-me em casa, mas numa casa que nunca é a mesma. Na oficina do meu ofício, os momentos nunca se repetem.

Um pouco ansioso, espero, pacientemente, respeitosamente terminarem o seu ritual, que não é somente físico, mas principalmente espiritual, e que consiste em abrir-se para um encontro com a magia, com os sonhos, com as fantasias, com o que há de mais universal nos seres humanos.

Essa atenção, esse respeito e essa admiração pelo que fazem é o meu aquecimento.

Terminado o ritual nós nos olhamos frente a frente e iniciamos uma aventura indescritível para quem não a vive. Ela compromete e absorve a nossa carne, nossos ossos, nossa alma. Juntamos toda a coragem que possuímos e mergulhamos decididos. Uma vez iniciado o percurso, a trilha nos encaminha para que olhemos para nós mesmos, lá dentro, bem no fundo, como disse Lorca... “onde treme a escura raiz do grito”. Outras vezes temos que olhar, ostensivamente, para fora, para o mundo que nos rodeia, como se saíssemos de nós mesmos. Entretanto sempre voltamos, mais sábios, mais plenos, mais humanos. Nesse ir e vir, muito trabalho, muita diversão e, principalmente, muita união, unha e carne.

Aos poucos e invariavelmente, como em qualquer lugar de intenso trabalho, ficam pelo chão e chega até a voar por toda a “oficina” algo, que na falta de melhor nome, chamamos de “aparas”. No fundo elas são bonitas e fazem nos acostumarmos com essa espécie de confusão. Chega um momento, entretanto, que são tantas que somos obrigados a permitir que sejam dali retiradas, definitivamente. Não temos outra saída. Nosso ofício exige escolhas cruéis, mas obrigatórias. Elas, entretanto, não saem da nossa memória, maravilhosas que foram. São nossas. Ninguém jamais as viu, ouviu, provou ou tocou, somente nós... em nós mesmos.

Debaixo das aparas, entretanto, começam a aparecer, difusamente, alguns esboços, alguns desenhos. Aos poucos, começam a se materializar em três dimensões... espécie de fantasmas...Nós os olhamos e eles nos olham meio indiferentemente... Esquisitos ainda com restos de aparas penduradas.

Às vezes e, nesta época, sempre tenho que abandonar a “oficina”, porque invariavelmente, quando essas “personas” começam a aparecer, tenho que estar presente e ausente ao mesmo tempo, sob pena de se criar um ambiente de discórdia e desamor entre os jovens e os esboços das personagens. De fora, relato a eles que as “personas” são veladamente, incríveis. De outro ângulo, começo a perceber alguma beleza nelas, quando o vento consegue esvoaçar seus véus.

É incrível a magia dessa aventura, e ao cabo de um bom tempo, quando estou de novo dentro da “oficina”...pasmem... como num toque de mágica, esses “seres” desaparecem, evaporam –se, escafedem –se... como demônios. Estremeço quando percebo que meus alunos também não estão mais ali... Quero dizer, estão, mas eu não os reconheço... é um pouco confuso...

Mais uma vez, num passe de mágica... as luzes se acendem. A ‘oficina’ lotada de pessoas. Entram alguns jovens, fantasiados, pintados mascarados. Habilidosamente começam a nos entreter... Aos poucos, entretanto, quando as luzes ficam mais fortes, por detrás das máscaras, das tintas, dos véus, começo a perceber os sinais evidentes da identidade dos mascarados... Graças a Deus, são eles mesmos, meus alunos, cheios de vida e humanidade. Não são somente desenhos e manequins, como suponha.

Então, como no primeiro dia que os encontrei, quando cheguei na “oficina”... eu espero, junto com o público... um pouco ansioso, mas pacientemente, respeitosamente. E também participando daquele ritual, me abro para um encontro com a magia, com os sonhos, com as fantasias, com o que há de mais universal nos seres humanos. No final, me sinto mais pleno, mais humano e, por isso mesmo, me emociono e, sem perceber, minhas mãos começam a bater, fortemente, uma na outra.

Eis o que acontece, na nossa pequena “oficina”, por mim pretensiosamente chamada de Oficina da Essência”.

Departamento de Teatro da ECA/USP, Verão de 1999.

11. A Carreira Universitária Pós- Livre Docência

Durante estes últimos quatro anos minhas atividades podem ser divididas em quatro linhas principais: a Pós-Graduação, a continuidade e aperfeiçoamento de meu “processo” de ensino na graduação; a coordenação e produção de publicações; a criação de uma peça teatral publicada; e uma nova atividade, que consiste em orientar projetos pedagógicos, para outras áreas da comunicação, em Universidades Privadas.

Na Pós meu trabalho foi intenso. Em primeiro formei um grupo composto por meus orientandos ou interessados em Interpretação Teatral para o qual tínhamos reuniões semanais de debates. As discussões foram animadas e a troca de idéias de pesquisadores, que possuíam orientadores diferentes criou o clima propício para uma espécie de curso fora dos padrões, visto que não havia nem a obrigação da presença e nem notas a serem atribuídas. Esses encontros produziram algumas dissertações de mestrado e artigos de excelente qualidade.

Baseado nesses “encontros”, criei um novo curso intitulado, na Pós-Graduação, intitulado Exercícios Específicos para o Treinamento do ator, para o qual somente foram aceitos alunos com alguma prática realizada na área de interpretação ou de direção de teatro e que possuíssem projetos específicos visando o treinamento do ator ou de criação de personagens. A avaliação final deu-se em forma de Aulas Públicas, para as quais cada aluno deveria escrever um ensaio e mostrar ao público, no intervalo de uma hora, o objeto de sua pesquisa usando para tal, atores que participaram da sistematização. Nos dias quatorze e dezesseis de agosto de 2001, no Teatro Alfredo Mesquita do CAC/EAC, as aulas foram apresentadas em um evento que se denominou “Seminários de Interpretação Teatral”, aberto à comunidade em geral. Os inscritos receberam um caderno com os artigos e assistiram às aulas dos pesquisadores. Os temas foram bastante originais e também diversificados: “Avesso do Avesso – A linguagem clownesca e o texto do ator”, Beth Dorgan; “Campo de Visão”, Marcelo Lazzaratto; “O Teatro Veloz: conceitos e técnicas para um Ator Veloz”, Ivam Cabral e Paula Ernandes; “Algumas questões sobre o olhar do ator”, Hugo Mengarelli; “As Irmãs do Tempo”, Rachel Ornellas; “O Drama no Corpo”, Carla Sabrina Cunha; “Iniciação ao treinamento do ator através da técnica de Klaus Vianna”, Luzia Carion Braz; “O Corpo do Ator”, Verenna Gorostiaga; “O Ator e Objeto: as Categorias Universais de Peirce e o trabalho do ator”, Teotônio Sobrinho e “O Ator Transparente”, Juliana Jardim.

Evitando detalhes que constam do meu currículo, possuo mais oito novos orientandos, sem contar sete mestrados concluídos nesses últimos dois anos. Dessas orientações, a de Crisianne Layer Takeda intitulada Cartas do Teatro de Arte de Moscou está no prelo da Editora Perspectiva, com subsídio da FAPESP. O trabalho de Rachel Ornellas, As Irmãs do Tempo, já recebeu parecer bastante favorável da EDUSP. Talvez tenha sido esta intensa produção o crédito e a honra dados a mim para organizar um capítulo sobre Interpretação Teatral na Revista Sala Preta, número 2, produzida pelo Departamento de Teatro da ECA, com lançamento programado para o mês de outubro. No referido número, sairão publicados, além dos artigos sínteses dos trabalhos das mestres já citadas, um ensaio sobre um dos capítulos de minha Livre Docência e três trabalhos síntese das pesquisas de três outros orientandos: Beatriz de A. Britto, Patrícia Leonardelli e Juliana Jardim. Ainda sobre a Pós-Graduação acabo de receber o livro, com o meu prefácio, resultado da defesa de mestrado de uma de minha primeiras orientandas. Tratas-se de Vôo cego do ator no Cinema Brasileiro de Ana Paula B. Corrêa, publicado pela Editora Annablume, de Belo Horizonte.

Depois de muito tempo sem escrever ficção, com exceção das “Dramatologias”, vi minha peça Talk-Show (1999) publicada pela Revista Repertório, da Universidade Federal da Bahia. Cito-a pelo fato de que é uma criação diretamente ligada às minhas pesquisas atuais: trata-se de uma entrevista em um estúdio de TV, onde uma senhora atriz fala de sua vida. Na sua trajetória, ela passa pelas principais fases do Teatro Brasileiro (sem qualquer referência explicita a nomes, lugares ou pessoas), desde a fundação da Escola de Arte Dramática de São Paulo até os dias atuais.

A atriz responde sobre as variações de suas criações e as principais cenas que interpretou são materializadas no palco. É uma espécie de aula de interpretação e de história recente do Teatro Brasileiro, bastante romanceada, da qual dois momentos já foram abordados em meus livros.

O trabalho de criação de Projetos Pedagógico junto aos professores e alunos de outras áreas aconteceu quase que, por acaso, quando expus aos colegas minhas reflexões a respeito do processo de aprendizagem. Sem ter estudado pedagogia, percebi que meu sistema para a criação de personagem, combinado com uma visita ao Museu Pablo Picasso em Barcelona, que através de uma didática formidável explicita de como o gênio espanhol conseguiu chegar dominar por completo a sua arte, bem como descobrir sua própria linguagem. Pressenti que aquele caminho, por aqueles degraus (Patamares), poderia servir de base para qualquer processo de conhecimento, desde que se organizassem Projetos Específicos, complementares e cumulativos para cada Patamar. Assim é que foram definidos quatro Patamares básicos, com projetos específicos, para um curso de graduação, denominados “SER” univeristário, “CONHECER” sua área, “EXERCER” o que conheceu no patamar anterior e, finalmente, “ESCOLHER” seus próprios caminhos.

12.Ponderações Finais.

A Universidade, com todo o seu ritual, faz-nos algumas surpresas. Iniciei esse Memorial como uma tarefa burocrática desagradável, a fim de que pudesse fazer um concurso público. Ao terminar, porém, a terceira versão, descubro que, além de ter me lembrado de fatos sensíveis e determinantes de que me esquecera, encontro-me comigo mesmo mais consciente, pleno e tranqüilo.

Mais importante: compreendo, através de uma autocrítica do meu passado, que ainda tenho muito a realizar e, portanto, com o que sonhar.

Cordiais Saudações...

São Paulo, primavera de 2002.

ARMANDO SÉRGIO DA SILVA

Um comentário:

NOCAM disse...

Dr. Armando, que memorial maravilhoso, agradeço a publicação, pretendo prestar um concurso na ECA e estou escrevendo o meu, estava com medo da liuberdade de meu estilo desagradar a formalidade de uma banca. Mas lendo-te vi que com sabedoria e autoconhecimento (com uma escrita tão bela) é possível se contar sem se desfazer do que de fato somos. Grata. Fernanda