terça-feira, 9 de setembro de 2008

TALK SHOW - TEXTO TEATRAL

TALK SHOW

armando sérgio da silva

(carnaval de 1998)

Personagens:

AMANDA BÜCKER - Atriz

JOFRE SAMPAIO - Apresentador

( CLIMA DE STÚDIO)

(O público é recebido na porta de entrada do Teatro pela coordenadora do programa. Ela diz as regras de comportamento do estúdio, como: silêncio na hora que estiverem gravando, que as gravações não serão feitas na seqüência real, que serão avisados quando aplaudir, etc..

Enquanto o público entra , luz de serviço...alguns técnicos trabalham..., e a equipe de produção faz alguns preparativos... nota-se uma competência profissional de todos... câmeras ..., iluminadores, contra-regras, etc. Nos monitores de TV [ frontal e espalhados pela platéia ] apenas o nome do programa TALK SHOW. Aos poucos o ritmo de ansiedade dentro do estúdio vai aumentando... os passos ficam mais rápidos... mais tensos.. as vozes vão aumentando... as luzes vão aumentando .. .

Em off : Produção: Atenção todos 3 minutos para entrar no ar.

A correria aumenta ... música de fundo... os câmeras se posicionam ... as luzes vão se ascendendo aos poucos até estourar... [ a imagem é a de um Boeing levantando vôo] Começa a contagem regressiva a partir do 10 ... Quando chegar no 2 .... o coordenador de palco .... vira-se para o público e mostra o cartaz... APLAUSO INTENSO [ na verdade a moça de blaser já orientou o público para três tipos de cartazes ‘APLAUSO INTENSO’- ‘APLAUSO MODERADO’ e “APLAUSO COM ASSOVIOS E UIVOS”] a música está no auge.... No meio dos aplausos... e com música de fundo....[ movimentação geral ] entra o APRESENTADOR JOFRE SAMPAIO [ veste -se de maneira elegante blaser ... gravata...etc ]

APRESENTADOR: Senhoras e Senhores... Boa noite! Daqui a poucos instantes vocês testemunharão uma viagem fantástica pela mais recente história do teatro nacional! Aqui, exatamente neste espaço, vocês irão se encantar ao acompanhar detalhes e filigranas de um dos ofícios... mais fascinantes de toda humanidade... o ofício do ator... do comediante... Viajarão pelos meandros do processo que leva os atores a nos emocionar... rir ...chorar e, até certo ponto, entender melhor o mundo em que vivemos. É através das personagens que representam que nos identificamos , que passamos a conhecer melhor a nós mesmos...Vinte e Sete de Janeiro ... O primeiro TALK SHOW da década de , como podem ver, é especial! Conversaremos com uma atriz que todos vocês conhecem por sua fantástica carreira no Teatro, mas com importantes incursões também no Cinema e na Televisão. Uma atriz, não tenho dúvidas, que pode ser considerada a maior do palco nacional....Uma mulher que nos deu tanta emoção... tanta beleza ... e que, infelizmente, envolveu -se naquele... incidente... que todos já conhecem ... em virtude do qual ela voluntariamente se retirou por cinco anos do palco Nacional . Por cinco anos senhoras e senhores não tivemos uma só palavra... uma só foto desta atriz...Frágil...humana...e desgostosa com a imprensa, que não lhe poupou os momentos mais íntimos de seu sofrimento... não deu mais declarações a qualquer tipo de mídia... Segundo a nossa opinião... uma atitude correta e coerente... pois o que alguns ditos colegas...(exalta-se) que envergonham a nossa profissão fizeram com o seu nome e a sua dignidade de mulher...( pausa) No seu recolhimento a visitei há três anos atrás ... E a tenho visitado desde então... Sempre frágil... mas bela...muito bela, ela tem me seduzido com depoimentos... dos mais tocantes e generosos... Dia 30 de dezembro ... quase ao se fecharem as cortinas da década... Eu a esperava no jardim interno de sua residência... Ela chegou com um brilho diferente nos olhos ...olhou para mim... sorriu me beijou me abraçou suavemente... e disse ao meu ouvido...Diga a eles que estou de volta... IT’S SHOW TIME! (tirando um papel do bolso)

Antes de chamá -la até o nosso palco... vejamos o que fala a crítica que acompanhou toda a sua carreira : (lendo o papel)

O Estado de São Paulo... “Dos atores formados pela Escola, sem dúvida já se nota uma jovem e talentosa atriz... que fez com o público, presente no teatrinho derramasse lágrimas, pelo seu desempenho apaixonado e sutil de Alma em Anjo de Pedra de Tennessee Williams... se eu fosse seu professor lhe daria nota dez”.

“Folha de São Paulo....Amanda Bücker encantou a platéia... frequentadora habitual da tradicional casa de espetáculos da Bela Vista... Sua juventude não se amedrontou perante os alexandrinos escritos por Racine para Fedra... Que paixão... que técnica... Foi um grande momento do teatro nacional....”

De novo, O estado de São Paulo...Um dos maiores desafios que uma atriz pode encontrar no palco é a personagem muda... que sem dizer uma palavra... consegue nos emocionar apenas pela sua presença...por sua expressão... Saímos do teatro na última quinta feira... Apaixonados pôr AMANDA... que, em silêncio...roubava dignamente quase todas as cenas nas quais aparecia...”

Revista Palco + Platéia..... O Estragon de Amanda Bücker... transmite a platéia jovem, que estranhamente tem lotado o teatro, toda a humildade humana sugerida pelo texto de Beckett... Sorte do Teatro Nacional de ter florido essa atriz em seu solo... artístico...”

Revista Veja...... “Amanda Bücker é como as melhores safras de vinho...quanto mais madura mais nos encanta... seu último espetáculo foi uma aula de teatro...paixão e arroubo.... Sinto -me mais feliz depois de vê-la” . Nestes últimos meses estive estudando os principais textos interpretados pela grande atriz. Cheguei mesmo a decorar algumas falas para que esta entrevista tenha o brilho que a nossa atriz merece.

Senhoras e Senhores peço que recebam com todo o carinho... com todo o amor ...e com todas as palmas... a atriz....AMANDA BÜKER...

(entra música frenética de fundo... abrem-se os cartazes ÁPLAUSOS FRENÉTICOS COM ASSOBIO )

AMANDA BÜKER: (Levanta-se de uma das primeiras filas da platéia... tem 60 anos, mas é ainda bonita ... altiva... digna ... apaixonada ... descontraída ... os câmeras e fotógrafos se aproximam rapidamente.. algumas pessoas do público a tocam de leve... os aplausos continuam...a música sobe... e ela se dirige firme para o palco... os câmeras a acompanham... olha para o público intensamente [ marca do ofício...] e o APRESENTADOR ... beija solenemente a sua mão e do palco ela manda um beijo muito forte a apaixonado para a platéia )

APRESENTADOR: Meu Deus que beleza!

AMANDA: Meu Deus que medo !

APRESENTADOR: Em nome do público, em nome do Teatro Nacional, eu queria agradecer a você pela sua generosidade de entrega artística, pelas emoções que nos fez viver durante toda a sua carreira... e é com todo o respeito... com todo o carinho que lhe fazemos hoje esta homenagem...Como você está se sentindo?

AMANDA: (longa pausa) Eu acabei de dizer... Com medo...Por que... É uma honra...ria muito grande... você

sabe eu quando represento a mim mesmo sou muito emotiva... apaixonada...tenho vontade de abraçar

a você... a todos esses críticos que disseram essas coisas maravilhosas... a todo esse público...que me

aplaudiu....e a todos os milhares de espectadores... tenho vontade de num só momento dar a vocês

tudo...o que eu tenho de bom... de representar ...de uma só vez e juntas todas as personagens que eu

fiz...faz tempo que eu não subo em um palco... e nesse momento... estou muito... plena de generosidade... e é isso que me dá muito medo... de não conseguir dar, através das palavras, tudo o que um doce beijo, um grande abraço apertado poderia transmitir ... eu queria que você ...

representando a todos... segurasse um pouco nas minhas mãos.... (estende a mão para o APRESENTADOR e este a segura)... Está sentindo?

APRESENTADOR: ( emocionado) Sim... e garanto que o que eu estou sentindo... representando a todos

vocês é muito bom... maravilhoso...

AMANDA: (mudando rapidamente de atitude ) Pode começar o seu trabalho...(sorri) It’s show time...

APRESENTADOR: Este é o público... O seu público como você costumava falar...Desfrute-o Amanda...

AMANDA: (olhando atentamente para a platéia ... enternecida) Tão Jovens... Nada substitui esse contacto ...

humano... lindos... Por isso que dizem que o teatro, apesar de estar em crise a cinco mil anos , jamais

morre... Que saudade...(Amanda fica um tanto absorta...como que no passado)

APRESENTADOR: ( um pouco assustado mas profissional) Então vamos começar do início... e para não

ficar só neste chavão, como foi sua infância?

AMANDA: Sensações... Muitas sensações... De um lado os grandes quintais... muita planta... muito bicho... O

sol... O vento...A água doce, fria e calma dos riachos... A agua salgada, quente e violenta das praias de fim de semana... As brincadeiras... ingênuas com as priminhas e nem tão ingênuas com os priminhos terríveis... Depois vinha a noite... sombras... mistérios... ouvir a conversa dos adultos .. na sala de jantar...Respiração suspensa, porque as vezes, quando notada ver que os adultos... interrompiam bruscamente um assunto... e sorriam uns para os outros... hora de dormir... Hora da solidão, do mistério... Hora que eu pegava meu livrinho de história com gravuras amareladas.... e sonhava...primeiro acordada e depois dormindo... Do outro lado a vida cosmopolita... a elegância dos chás de uma Confeitaria linda... homens e mulheres maravilhosos... Em resumo... tudo o que uma atriz precisava ter sentido ... na infância. Eu fico pensando... como serão os atores do futuro...Criados confinados ... em apartamentos...

APRESENTADOR: Provavelmente vão se especializar no Teatro de Pânico... (riso) Mas e a sua família era ,

podemos dizer, de classe média ...

AMANDA: Naquele tempo quase todo mundo era funcionário público ... É uma coisa que eu não entendo... De

onde vinha o dinheiro para pagar os funcionários públicos ...? E dizer que não trabalhavam? Meu pai

era médico e minha mãe professora... Meu pai direto... manhã e tarde no Posto de Saúde e minha

mãe.... corrigindo cadernos de madrugada... Que beleza que era a Escola Pública... E alguns que não trabalhavam... faziam poesias na seção pública...Não sei o que seria da nossa melhor literatura e artes, não fossem os cargos públicos... O cargo público para os escritores... era mais ou menos o que hoje são os orgãos financiadores de pesquisa . Em resumo, os cargos públicos financiavam a Inteligência Nacional...

APRESENTADOR: Hoje eu vou de chavão em chavão...Me desculpe mas algumas perguntas são

fundamentais.... Quando entrou o Teatro na sua vida ?

AMANDA: O teatro começa na gente muito cedo... Eu me vestia de mulher adulta... minha mãe... linda... e eu com

os seus vestidos... longos....sapatos altos... representava para as empregadas... elas morriam de dar

risada... e eu...fazia muito charme... meu pai me dizia... linda... Nada melhor para uma criança do que ser querida... eu era muito querida e os amava... profundamente... Acho que uma atriz se inicia assim... querendo ser amada... deixando os outros a amarem... quanto mais eles me amavam.. mais eu me exibia... eu me enfeitava todo os dias ... e dava o meu “showzinho” particular...

APRESENTADOR: Você ia muito ao teatro, na infância e adolescência?

AMANDA: Meus pais me levavam ao teatro... mas eu gostava mais do circo... Aquelas cortinas com franjas

douradas... a pele da bailarina... lisa... lisa... montando um cavalo negro... os músculos brilhantes do

trapezista... cara de másculo... bigodão... E a música... Ah! a música... ao vivo... a caixa repicando... nos momentos mais emocionantes... Os metais anunciando... Aquele cheiro de serragem.... Montei meu próprio circo... em casa... com lençóis... eu era a bailarina... e amava perdidamente o trapezista e ele me levava... lá para cima.... e me balançava... balançava lá nas alturas... eu era uma garotinha muito sensual... todos gostavam de me apertar... e eu não me fazia de rogada...

APRESENTADOR: Era uma época do Teatro de Atores, não era? Dos grandes atores que tinham as suas

companhias?

AMANDA: Levaram -me para ver uma peça... não me lembro bem do enredo... mas havia uma mulher

incrível... com um enorme chapéu verde cor de alface.... que saltitava de uma lado para o outro do palco... ela tinha um jeito... todo especial... era mais ou menos assim ( a atriz deve fazer trejeitos, e boquinha de ingênua , gracinhas e inflexionar com voz de cabeça típicos do papel de ingênua do teatro de boulevard) era linda... alta... um corpo... olhar quente... Outra vez me levaram ver um grande ator... passou quase a peça inteira no centro do palco... Não me lembro muito dos seus gestos...mas ... vá falar bem assim no inferno... sai do teatro com a música das suas palavras no meu ouvido... poucas vezes ouvi alguém dizer tão bem... as sua falas.. que por sinal eram quase todas... estrelíssimo... Tinha também o Teatro de Revista... Shows muito ricos... e muita música... muito brilho...muita luz...

APRESENTADOR: E você no palco... Demorou muito...?

AMANDA: Era aquela coisa de teatrinho de escola... Showzinho para os pais no fim de ano...Ser mulher pôr

aqueles tempos era muito difícil ...Deixa para lá depois eu falo sobre isso... Eu sabia que queria ser uma atriz... acho que desde quando eu estava no ventre de minha mãe... acho que no dia em que eles me fizeram ... eu sempre fui filha única... acho que me fizeram com muito amor... Naquele quarto deve ter tido muito drama e comédia, você entende?

APRESENTADOR: (BRINCADO) Entendo...!

AMANDA: Mas nem passava pela minha cabeça... e muito menos nas dos meus pais que isso poderia virar

profissão... Eles queriam me colocar na Escola Normal... Eu deveria procurar uma formação de menina casadoira...Foi quando li... eu lia muito jornal... essa foi a minha sorte... que estavam fundando uma Escola de Teatro em outro estado. Em resumo só me lembro do choro da minha mãe na estação e da cara de preocupado do meu pai acenando... Foi a ultima vez que os vi... Você sabe meu pai se contagiou no Posto.. e depois contagiou minha mãe... O BCG já existia.. mas foi fulminante... Mas depois que eu não mais enxergava a silhueta deles... no trem... eu olhei para mim mesma, no espelho da cabine... e murmurei... “Vai... Vai ser uma atriz... Louca varrida...” E agora eu estou aqui?

APRESENTADOR: E você era disciplinada? Levava a sério?

AMANDA: Uma das minhas primeiras professoras... no primeiro dia de aula disse... “Teatro é 80% disciplina e

o resto... bem o resto já está em vocês”...Sim eu estudei muito...Tinha aulas de teoria Preparação vocal e corporal... Imagine... Esgrima... Dava elegância...Postura....Depois... nos últimos anos... fiz muito.. .como chamavam? ...laboratório.... treinei muito meu corpo... minha voz...Nossa escola tinha um lema colado na parede... “teatro é duro”... e os laboratórios de interpretação...... Alguns terríveis... Descobria -se também o Método Stanislavski, Actors’ Studio etc....Lembra da sua mãe... de quando você se ... deixa para lá...da morte da sua avó...Era tudo muito engraçado, mas importante... eu sempre entendi laboratório no sentido estrito da palavra...Para ser uma atriz é preciso experiência de vida... e nós éramos muito jovens...Daí a palavra laboratório... Criar condições semelhantes de experiência de vida... E isso eu aproveitei muito... Quanto mais louco o laboratório mais eu gostava...

APRESENTADOR: E agora como você faz ?

AMANDA: Hoje , quer dizer, depois... foi diferente... O método pessoal do ator transforma-se numa coisa

meio inconsciente... Eu vou tentar explicar... Quando leio um papel... no meu quarto... na calada da

noite...sozinha...sozinha.... Faço todos os laboratórios que eu vivi... nas aulas e fora delas... A aqui

dentro... As vezes sem mexer um só músculo...E depois o treino constante faz com que a gente passe a fazer da vida um grande laboratório...Cada pessoa com quem eu cruzo...cada ritmo de minha respiração... cada olhar...cada objeto ou pessoa que eu toco... cada cheiro...que eu sinto no dia a dia ficam impregnados no meu corpo... é como se eu ficasse plena... grávida de sensações.. .música... ritmos... E quando estou estudando...me relacionado com uma personagem... generosamente... transfiro para ela tudo o que o meu ventre... a minha gravidez tem de humano de emoção e de arte... daí então... naturalmente...suavemente... eu me aproximo... da personagem... das sua sensações... do seu ritmo... da sua música...da sua escultura... da sua paixão... (sorri e pisca)... da nossa paixão.... minha e dela....

APRESENTADOR: Foi na Escola que você começou a chamar a atenção da crítica, foi muito comentada sua

interpretação como a personagem ALMA em SUMMER AND SMOKE do Tennessee Williams que foi traduzida como ANJO de PEDRA ... Ah essas traduções.!!!

AMANDA: Tempos bons.... ( se emociona) Que saudade meu Deus!

APRESENTADOR: Você se lembra de como conseguiu ser ALMA?

AMANDA: Eu tinha 20 anos... No início a gente tenta submeter a personagem ao que a gente é... Quer dizer,

naquele tempo...com vinte anos eu queria ser forte... liberada... independente... e queria o mesmo que ela... No início dos ensaios... foi um horror ... Eu dizia para ALMA... Vamos... vamos mostrar para esta gente quem somos nós ... E era como se eu tentasse segurar forte na sua mão... sem conseguir ... uma mão muito frágil ... escorregadia... fraca... Foi então que em vez de puxá -la eu comecei a abraça-la e ficar juntinha dela ... senti o seu coração tremendo ... Comecei a me sentir bem .... Invadiu -me uma fragilidade tão ... triste... E eu pensei... Meu Deus! Está tudo lá ... no texto ... ela dizia num trecho... “ Sou uma dessas pessoas fracas e aos pedaços!” Na cena final da peça nós... eu e ALMA ... pensávamos ... É agora ou nunca... Quando mais jovens... perdemos a oportunidade de amar ... John ... um garoto maravilhoso ...porque... bem porque ... aprendemos desde criança a reprimir ... a sensualidade... Puritanismo... Só o espírito interessa .. A corpo deve ser controlado... E havíamos decidido que o encontro com John ...agora médico... seria a nossa última oportunidade de amar... Há via um exercício na aula de interpretação que deveríamos procurar um animal ... que mostrasse as características da personagem.. numa determinada cena... Foi então que meio sem inspiração ... notei numa das janelas da sala a presença de um ... Beija - Flor ... Foi uma revelação... Era ... ALMA!

Frágil... O bater das asas... concretizou - se na sua respiração... assustada .... mas com uma vontade muito grande de... amar... criando coragem... De repente estava eu em cena...

(TOCA NA MÃO DO APRESENTADOR, ESTE ASSUSTADO VASCULHA UM CALHAMAÇO ATÉ ENCONTRAR A PÁGINA.)

AMANDA: Nós não tínhamos a mínima idéia de como seduzir... um homem... só uma coisa na

cabeça... eu quero amar... eu preciso amar alguém... enquanto isso muito sem jeito... mas internamente com o ritmo do beija flor... eu falava de banalidades....

(entra texto de “ANJO DE PEDRA” de T. WILLIAMS )

ALMA- Você não me cumprimenta? Nem ao menos me cumprimenta?

JOHN- 0lá, Miss Alma! Sente-se, Miss Alma.

ALMA- Eu não estou incomodando...?

JOHN- Não.(Sorri)

AMANDA: Eu senti que tinha conseguido ... quebrar o gelo... Pela primeira vez ele tinha sorrido... e que alegria...me mandou sentar...Comecei a ficar confiante... Daí em diante eu só tinha um objetivo... tocá -lo... eu sentia que a hora estava chegando... era só mais um pouquinho e eu cairia nos seus braços... finalmente... amar.... tocar....É um momento delicioso da cena....

JOHN- (Vai ate’ Alma, tira o relógio de pulso e toma-lhe o pulso) Tem se preocupado de novo com seu coração?

AMANDA: Chegava a hora... a qual eu havia esperado.. muito tempo... Eu iriatentar seduzir um homem... um homem a quem eu amava.... O momento em que eu mais gostava como atriz ... Eu tinha que passar para o público... toda a coragem ... de uma puritana ... uma sensualidade que eu não tinha.... Como não era o meu caso...quer dizer... eu tive... até certo ponto uma educação com rigor... mas nada que chegasse aos pés da educação ... Quacker , ou sei lá o que... de ALMA... a mulher afinal tinha ficado doente...por causa dessa repressão...Foi daí que eu criei uma contradição terrível... Quer dizer o corpo queimando ... mas reprimir... reprimir... tomar banho sem tirar a roupa... tomar banho de camisola... sem espelho... sem ver... a visão... tocar -me por baixo da camisola molhada... como cega... tocar -me sem sentir ... retesar o corpo cada vez que sentir... procurar outro lugar... mudar... para não sentir... o diabo... minha mãe ... minha vovó ... água quente... água quente não... por favor... meu corpo... responde à água quente... usar luvas... minha mão... procura... quente.... muda... muda .... muda de lugar... meu deus me ajude ... eu vejo através das mãos .... mesmo com luvas... bate mamãe.... bate na mãozinha... bate na mãozinha...Ela sabia que era sua última chance. E pela primeira vez ela foi ousada. Deu um beijo aflito e sentiu um gelo na boca.

Quis mostrar que era mulher, quis ser sensual, mas o corpo já estava.acostumado a ser correto, decente, puro. (Esse momento era um dos meus preferidos). Ela vai deitando na mesa, se insinuando para John, desajeitada dura... e John a levanta, cuidadosamente, quando John me levanta... divido em 4 momentos... cada um mais acachapador. Para Alma era um Não violento. Minha sensação neste momento era de, frustração, tristeza, vergonha...

ALMA- E agora o estetoscópio? (John a olha, adapta o estetoscópio aos ouvidos e começa a auscultar-lhe o coração. Ela o olha e aperta a boca na dele. John mantêm-se passivo.

ALMA- Por que não diz nada? O gato comeu sua língua?

JOHN- Miss Alma, o que é que eu posso dizer?

ALMA- Voltou a me chamar de Miss Alma de novo?

JOHN- Nós nunca fomos muito mesmo além disto, fomos?

ALMA- Fomos! Ah, fomos sim! Éramos tão íntimos que quase respirávamos

JOHN- Eu não sabia.

ALMA- Não? Pois eu sim, eu sabia. (Ela Ihe toca a face com a mão,ternamente.) Você não está com o rosto cortado de navalha; aqueles cortes que eu punha talco de gardênia...

JOHN- Agora eu tomo mais cuidado quando faço a barba.

ALMA- Então é por isso! Agora é... impossível?

JOHN- Eu não entendo o que quer dizer.

AMANDA: Daí em diante... eu me deixava levar pela emoção que ficava presa

a cena inteira... quer dizer quando eu tive coragem...frágil do jeito que eu era... ele... não foi capaz... Prato predileto para a atriz ... Eu adorava sofrer, me emocionar com Alma.

ALMA- Entende sim! Entende muito bem! Seja honesto comigo. Um dia eu Ihe disse “não” para certa coisa. Talvez você se lembre quando foi... aquela... gritaria alucinada da briga de galo! Mas agora eu mudei de idéia. Ou melhor,

a moça que disse “não” não existe mais. Morreu no verão do ano passado sufocada pela fumaça de algo que ardia dentro dela. É... ela já morreu Mas deixou-me seu anel. Este aqui. Este anel que você gostava, com o topázio e as pérolas... E ela me disse, quando me colocou o anel neste dedo: “Lembre- se de que eu morri com as mãos vazias... por isso faça tudo para que suas mãos contenham alguma coisa!” Eu perguntei a ela: “E o orgulho?” E ela respondeu: “Esqueça o orgulho sempre que ele se interpuser entre você e o que você tem de possuir!” E então eu disse: “E se ele não me quiser?” Não sei o que foi que ela respondeu... Nem sei se ela disse ou não alguma coisa...ela parou de mover os Iábios - é, eu acho que ela cessou de respirar!... Não? Então a resposta é “não”!

JOHN- Eu respeito a verdade e a respeito também. Portanto é melhor eu falar honestamente como quer que eu fale.

ALMA- Não tente me confortar. Eu vim aqui de igual para igual. Você queria falar com franqueza. Falemos. Com uma franqueza que não poupe “nada, despudorada, até! Já não é mais segredo que eu o ame. Nunca foi. Amo desde aquele tempo em que Ihe pedi para ler o nome do Anjo de Pedra com os dedos. Eu me lembro daquelas tardes longas da nossa infância, quando eu tinha de ficar em casa estudando música e ouvia os seus chamando “Johnny! Jobnny!”. Só de ouvir seu nome gritado, assim, parece que me feria fundo, fundo. Eu corria para a janela só para ver você saltar a grade da varanda! Ficava de longe, a meio quarteirão de distância, só para poder ver o seu suéter vermelho, todo rasgado, quando você brincava correndo naquele terreno baldio. Pois é: começou cedo este sobressalto de amor, e nunca mais me largou. Cresceu com o tempo. Eu vivi ao lado da sua casa todos os dias da minha vida. Uma criatura fraca e aos pedaços que vivia adorando a unidade da sua força. Esta é a minha história. Agora, eu queria que você me dissesse uma coisa: Por que foi que não houve nada entre nós? Por que foi que falhou? Por que foi que você chegou até um certo ponto... e não foi além?

JOHN- Não era isso que você tinha para me dar. Eu sei que sei que os seus olhos e a sua voz são as coisas mais lindas que eu já encontrei. As mais lindas e mais divinas, se bem que não pareçam fazer parte do seu corpo...

ALMA- Você fala como se meu corpo tivesse deixado de existir para você, John, apesar de você ter sentido meu pulso. É isso! É isso sim! Você procurou evitar mas acabou falando claramente. O feitiço virou contra o feiticeiro! E como! Você passou a pensar como eu, e eu a pensar como você,como duas pessoas que fossem se visitar à mesma hora e encontrassem as portas fechadas e ninguém para atender à campainha! Eu vim aqui para Ihe dizer que agora eu já não achava que ser um cavalheiro fosse imprescindível,mas você me comunica que eu preciso continuar sendo uma mulher decente?O feitiço virou contra o feiticeiro! E com um toque de vingança! O ar aqui está impregnado de éter. Eu estou ficando meio tonta...

JOHN- Eu abro a janela.

ALMA- Por favor.

JOHN- Pronto.

ALMA- Obrigada. Melhorou. Lembra-se daquelas pilulazinhas brancas que me deu uma vez? Já tomei todas. Pode me dar mais algumas?

JOHN- Eu avio a receita.

(Alma pega a receita e caminha para a porta.)

AMANDA: Havia uma certa tranqüilidade... triste mas tranqüila... era como se eu

tivesse... pelo menos uma vez na vida, feito a minha parte...

JOHN- Alma! Você apareceu na minha vida como um anjo misericordioso

ALMA- O único anjo que existe aqui é o da fonte. Seu corpo é de pedra, e

seu sangue, água mineral.

(Fim da Cena de Anjo de Pedra)

AMANDA : E adorava também ouvir as pessoas do público chorando. Eu achava engraçado... Uma vez, ao

final de um ensaio, um amigo veio me abraçando e dizendo “Olha, eu te amo, viu?”, e eu dizia “Tudo bem, eu estou bem”. AH! Escola...Tempo bom...Li em um livro, que acabou de sair, um trecho que gostei tanto que acabei decorando... A Escola não mudou muito... Apenas fica em um lugar distante....Escuro, as aulas ão a noite...Ao cair da noite, depois da condução difícil, começam a chegar os alunos-atores... Aos poucos, um por um, os alunos abrem seus armários de aço e colocam a malha de trabalho sugerida por Dalcroze, no inicio do século. Quem quiser achá-la poderá aguçar os ouvidos para o som que dela e mana, proveniente dos exercícios de dicção ou dos gritos, sussurros e risadas das emoções do desempenho de seus alunos. No meio da escuridão, suas luzes certamente chamarão a atenção de alguém que por ali passar e, se esse passante for curioso o suficiente, poderá aproximar-se sem medo e olhar por suas janelas, para ter o privilégio de observar alguns jovens realizando, com todo o rigor e respeito, um estranho e mágico ritual, que consiste na ação frenética, difícil e maravilhosa de dar vida a personagens imaginários...

APRESENTADOR: Início da carreira? Muito trabalho?

AMANDA: Nada... muito jovem fui para minha cidade resolver os problemas financeiros... A casa enorme...

Tinha a pensão da minha mãe... Enquanto eu ficasse solteira... Como as coisas são interessantes... Minha mãe sonhava em me casar... e a sua pensão me impedia de casar...

APRESENTADOR: No início nada de teatro?

AMANDA: Fiquei um pouco perdida... Voltando...para casa... sem ninguém... Foi uma época de reflexão... Ao

amanhecer ... eu ouvia o som dos pássaros... e a noite... longas noites...ouvia Rachmaninof ...Se naquele momento eu tive uma experiência interior incrível, ao mesmo tempo... eu comecei a sentir... o medo da solidão... Um vazio...Daí eu me lembrei do momento da cabine do trem... quando eu olhava para o espelho... (emocionada) “Louca... Vai ser atriz...!”... No dia seguinte.... peguei minha pequena mala... abandonei a casa... os pássaros e o Rachmaninoff e fui procurar emprego...

APRESENTADOR: Sorte nossa... do público...

AMANDA: (sorri) Você é muito gentil... Daí eu comecei como toda a atriz começa...Havia uma companhia

estável e eu fiquei pôr ali... Fiz muita ponta...coadjuvante... Era uma outra escola.... Diretores de fora... gente talentosa... Foi depois que eu fundei minha própria companhia de teatro... E até meu último espetáculo eu produzi e atuei.. sempre convido diretores diferentes e... me apaixono por todos eles... (ri)

APRESENTADOR: É verdade?

AMANDA: Claro que não... Mas em certo sentido sim... Os diretores...são uma espécie de voyeurs seriam

excelentes atores... são apaixonados... vibrantes... gostam de colocar a gente no fogo... no bom sentido e ficar olhando... olhando... voyeurs... Ora para um atriz... que é exibicionista... por natureza... nada melhor do que um grande voyeur... E isto, na verdade... é um caso meio amoroso...

APRESENTADOR: Nós , quero dizer, nós do público somos, no fundo, voyeurs...

AMANDA: Então eu tenho um caso amoroso com todos vocês...

APRESENTADOR: Quem me dera....

AMANDA: Veja só, virou galanteador...? Isso vai para o ar , hein?

APRESENTADOR: Falar nisso e aquela história da foto... Você foi uma das primeiras a ....

AMANDA: Pousar nua?

APRESENTADOR: Foi um escândalo Nacional... Lembro -me de que o fato foi comentado

na Assembléia Legislativa...

AMANDA: Estou me lembrando aquela deputada fachistóide... Queria me prender... O fato

é que foi divertido...Há uma diferença entre modelo e atriz... quando se pousa para revistas..

APRESENTADOR: Não entendi?

AMANDA: Disserem -me: - “Você tem que seduzir as pessoas... Ser sexy...” Ora isso para uma atriz é um

prato cheio, você entende... Encarnei na personagem... direto...Eu era uma mistura da Marilyn, Mata -

Hari, Luz del Fuego...e tudo quanto foi mulher erótica deste planeta na hora da foto... Coitado do fotógrafo ... jovem ainda suava feito louco ficou vermelho como um pimentão... E eu nem aí... Não era eu entende? Eu criei uma personagem que era a lascividade em pessoa... que eu hoje... tenho até vergonha de lembrar...E u fiz sem a menor preocupação... A vantagem da atriz em relação a modelo é esta...

APRESENTADOR: É pôr isso é que... Posso te revelar um segredo? ... Eu guardei essa revista até hoje...

AMANDA: Espero que ela lhe seja... útil.... (os dois caem na risada)

APRESENTADOR: Você ficou nua uma vez... mas no palco ?

AMANDA: É, mas não tinha nada de erotismo... Foi “Na Selva das Cidades” . Uma montagem maravilhosa feita pelos meninos...Grotowiski e tudo mais. Eu me vendia para salvar a luta de um irmão... Acontecia em um bordel... Lembro -me que quando descia o vestido... era de seda e descia muito rapidamente...um barulho muito sensual de seda escorrendo e, zapt, eu ficava totalmente nua... eu estava atrás de uma espécie de véu vermelho... Muitos da platéia que, era bem próxima, abaixavam os olhares... Era uma nudez muito digna...Eu me sentia muito bem...

APRESENTADOR: ( suspirando) Ao trabalho... Um grande momento... Um grande gesto ?

AMANDA: Foram tantos... Sim claro.... Eu fazia uma figuração na Companhia....Fazia uma surda muda... Eu

estava em cena com mais três atores... quando deu um estrondo... numa das laterais.....tinha caído um “spot” e queimado... e um pequeno início de fogo... os atores que estavam comigo desceram... o publico começou a se levantar... mas logo resolveram... dois ou três minutos... De repende tudo voltou ao normal... e eu estava sentada na minha cadeira impassível...

APRESENTADOR: (DESLUMBRADO) Você era surda e muda...Não poderia....

AMANDA: Foi muito bonito o público percebeu... e começou a aplaudir... aplaudir...quase que tivemos que parar o espetáculo...Foi muito emocionante aquela cumplicidade...

APRESENTADOR: Belo... O teatro tem isso não é?... quem viu esse momento viu ...quem não viu não verá

jamais...Parece que você não perdeu nenhum dos grandes momentos do teatro Nacional ? Você tinha

sorte? O lançamento de um dramaturgo nacional ... Uma inovação de direção ... uma badalação ... E

você estava lá... Sorte?

AMANDA: Um pouco... Mas não era só isso eu nunca fui de me acomodar...Quando surgiram os meninos...

APRESENTADOR: Meninos...???

AMANDA: Era como a gente chamava ... os meninos que vinham para revolucionar o teatro no início dadécada de 60...

APRESENTADOR: Você fez parte desses grupos?

AMANDA: Não ... Mas fiz alguns espetáculos com eles... Eu tinha dificuldade de participar porque, apesar de

consciente politicamente, eu não era tão engajada como eles... e também não tinha estrutura participar do processo grupal meio existencial/político deles Mas eu transava com eles ...

APRESENTADOR: ( Num sobressalto) O que?

AMANDA: Lá vem você de novo, com malícia... Eu me enturmava com eles... era a turma

mais animada da época... Lindos... Nos barzinhos da vida ... a gente vivia... discutia.. época maravilhosa...

APRESENTADOR: Você fez algum espetáculo com eles?

AMANDA: É claro...como convidada... Muita música... muita alegria... sem personagens fixos... eu fazia mais

de seis personagens... teatro novo... jovem...Graças a Deus eu estava lá... eu cantava... dizia textos lindos... Nós todos de Jeans... e blusões coloridos.... Na platéia uma juventude incrível usando o mesmo figurino...Tínhamos um inimigo comum... Teatro da Comunhão... Festivo... Muito Festivo... (canta) Oh Happy days...Happy days...

APRESENTADOR: Um papel bem difícil...

AMANDA: Tatiana... de “Pequenos Burgueses”...

AMANDA: Tatiana quase não falava... Era a irmão solteirona da casa...Uma das

personagens mais tristes que interpretei... Sensível...frágil... procurava desesperadamente um amor... maravilhoso... e solitária via a vida passar... mesquinha... mundana... as pessoas todas feito rinocerontes a machucavam... Ela amava a distância...a seu jeito um jovem... idealista...que amava a irmã de criação... sensual... cheia de vida... Ela era uma professorinha de escola primária... Sonhava com um mundo poético que não existia... onde as pessoas fossem delicadas...sutis... delicadas... Quando eu interpretava Tatiana ...me vinha constantemente a imagem da minha mãe , também professorinha... sensível... que não combinava muito com as estridentes festas que haviam na minha casa... Ela ficava desesperada... quando as pessoas ... meus tios e primos... discutiam se ofendiam... Ficava no fundo da sala... tensa... silenciosa... esperando que a conversa desagradável acabasse... E eu ficava pensando ... ela que preparou toda a comida... com tanto amor... Não via a hora de tudo aquilo acabar... Sempre que as festas terminavam... Na hora de dormir... Eu ia até o seu quarto... Enquanto meu pai ainda irritado... andava pela casa... e num gesto de cumplicidade... beijava o seu rosto... Invariavelmente eu sentia nos meus lábios... a sua face morna molhada e salgada... Depois eu ia para o meu quarto e chorava muito... até a madrugada... Quanto a Tatiana de “Pequenos Burgueses” ela não agüentou... a solidão... passou a falar cada vez menos e... acabou tentando o suicídio.

AMANDA: Uma das personagens mais tristes que interpretei...

APRESENTADOR: Eu assisti este espetáculo...Você tinha uma palidez irreconhecível e... sem dizer as vezes uma palavra... conseguia fazer com todos nós olhássemos para você...

AMANDA: Eu ficava ali pensando... pensando em coisas muito íntimas... e eu adorava sentir o público, mesmo sem saber do conteúdo, compartilhar da minha atmosfera... O silêncio no teatro é mais ou menos como a música... Não é preciso entender nada basta ouvi -lo ...

APRESENTADOR: Você se arrepende de não ter feito algum espetáculo?

AMANDA: Muitos...Muitos....Quase todos da época...Época difícil mas muito rica...

grandiosa...

APRESENTADOR: Os dias felizes foram ficando complicados... para o final da década...Anos de muita repressão os atores começaram a ser, entre aspas, mal vistos...?

AMANDA: É, tínhamos que fazer teatro e ao mesmo tempo ... defender o direito de fazer... Escuridão total... Que vergonha... (irritada) Eu queria que quando as pessoas falassem do Teatro Nacional, com certa leviandade...que... dobrassem a língua... Nós os artistas de teatro resistimos... nos palcos...nas ruas... nos camarins... apanhamos... fomos presos... torturados... mas ninguém calou nossa boca... eu ainda me lembro dos corpos machucados de meus amigos que faziam uma peça meio agressiva... marcados por essa imbecilidade que assolou o país... as marcas... e principalmente eu guardo no meu coração essas terríveis marcas... O teatro nacional foi digno...digno...digno...muito digno... Fazíamos (sem fechar as portas da nossa casa um só dia ) os espetáculos dentro de um clima... grotesco... imbecil...Eu ainda me lembro... Violência... Violência... Os homens...homens? ... Os meninos ainda estavam quentes... brigando...pelos seus ideais... os homens têm isso de bonito... e algumas moças ...também mas as mulheres... as mães ... as Marias e Clarices... parecem que são mais ligadas a terra... são mais... eu não sei explicar... Elas sofreram muito... eu representava Lorca...Bodas de Sangue... e é impressionante como em certas épocas... o teatro é mais pungente... Ficou mais clara para mim naquela época a expressão “Todo ato é sempre um ato político”! Não era uma peça política ... era um conto de amor... mas no final ... eu me arrepio até hoje quando eu me lembro... No meio de toda aquela violência na ruas ... aqueles meninos moços sendo torturados... aquele clima terrível... o teatro cheio de pais e principalmente de mães... eu ia até o proscênio e dizia... como a MÃE....de Bodas de Sangue

Vizinhas; com uma faca, com uma faquinha,

por um dia assinalado, entre as duas e as três horas

se mataram esses dois homens do amor

Com uma faca, com uma faquinha que mal nos cabe na mão,

mas que penetra tão fina pelas carnes assombradas,

e vai parar lá no sítio onde emaranhada treme a escura raiz do grito.

E isto é uma faca, uma faquinha, que mal nos cabe na mão,

- que é um peixe sem escamas nem rio -

para, em dia assinalado, entre as duas e as três horas,

Com esta faca,

ficarem dois homens hirtos e de lábios amarelos.

E mal nos cabe na mão;

penetra, porém, tão fria pelas carnes assombradas!

- E pára naquele sítio onde emaranhada treme

a escura raiz do grito.

...as luzes caiam em resistência ... um silêncio... depois algumas palmas e no final uma gritaria ensurdecedora... e eu via muitos olhos chorando era só isso que eu via enquanto solenemente eu me curvava e agradecia.

APRESENTADOR: As luzes também caiam... em resistência... no país ?

AMANDA: Black - Out (Amanda abaixa o rosto e grande pausa)

APRESENTADOR: ( a toca no braço) Tudo bem?

AMANDA: Todos nós...ou quase todos nós piramos na década de 70... Fomos a procura...de

tudo... muita loucura... Estivemos por algum tempo... muito perdidos... muito... loucos..... Eu entrei em cada uma... Fui obrigada a fazer um aborto... que me deixou estéril...eu que sonhava ter um filho... uma criança...(pausa a partir desse momento

e até o desabafo final AMANDA deve colocar... as vezes.... algumas pausas estranhas... como se estivesse pensando no que dizer.. e isto de certa maneira, deve assustar o APRESENTADOR...que fica sensivelmente incomodado)

APRESENTADOR: Você está ...bem ?

AMANDA: (GESTO QUE SIM)

APRESENTADOR: início da década de setenta ?

AMANDA: (sorri) Elegância da Esgrima... Experiência de vida...Quando eu era ainda muito jovem, na época de Miss Alma, um diretor viu o meu trabalho e me disse: seria muito melhor se você tivesse mais experiência de vida. Talvez esse momento tinha chegado junto com a década... Algo se fazia diferente dentro de mim, algo ficara mais pesada, mais denso... Eu queria fazer um espetáculo onde eu aproveitasse a minha maturidade... toda a minha experiência de vida.. queria me entregar totalmente ao trabalho...

APRESENTADOR: ESPERANDO GODOT, DE SAMUEL BECKETT....

AMANDA: Acertou na mosca...

APRESENTADOR: ( pausa... pensativo) Desculpe-me...Estou um pouco emocionado lembrando deste espetáculo...Depois que eu assisti você, acabei comprando o livro e li uma dezena de vezes... quase decorei...

AMANDA: Represente então um momento?

APRESENTADOR: Quem sou eu... na sua frente... de milhares de espectadores... Fiz teatro amador... e era um canastrão... Virei apresentador e não quero perder meu emprego...

AMANDA: (sorri) Até que você leva jeito... Você leu direitinho as falas do médico no Anjo... O que é isso que você faz aqui?

APRESENTADOR: Eu faço uma personagem só... em todos os programas...Mas mudando de assunto... Você ganhou quase todos os prêmios com GODOT... Como você conseguiu aquele Estragon tão leve... tão maravilhosamente típico do ser humano...

AMANDA: Trabalho meu amigo... muito trabalho ... o processo foi maravilhoso... eu já veterana... 40 anos ... tive que me superar...... todas técnicas, etc...O pessoal

estava fazendo uma coisa meio... forma pela forma... mas eu acho que consegui aliar a estética à organicidade...eu sempre fui muito orgânica...

APRESENTADOR: Quer dizer que tudo aquilo foi técnica treino...?

AMANDA: Lógico... Havia para mim uma partitura detalhadíssima de todos os pequenos gestos, movimentos e sons do Estragon...

APRESENTADOR: Que trabalho?

AMANDA: Você nem pode imaginar... Aliás o público, quando assiste um espetáculo, não tem a mínima idéia de quanto nós trabalhamos... para conseguir algum resultado... Você quer que eu te conte uma história... era tão difícil para mim fazer o Estragon... que eu depois do ensaio... comia qualquer coisa... ia para casa... me vestia de Estragon... e ficava até quase o amanhecer... sozinha, na minha cama ensaiando e pesquisando os gestos... da personagem... Um dia o diretor foi me visitar... lá pelas tantas e me viu na cama...com a cenoura e os sapatos ... e caiu na risada pensou que eu estava ficando meio louca.. Eu respirava o Estragon... E ele me fazia muito bem... Realmente o Beckett conseguir sintetizar toda a humildade e grandeza do ser humano ali... Incrível é que uma peça considerada hermética era assistida por colégios... por jovens que adoravam o espetáculo...Foi uma coisa emocionante... Foi então que eu descobri que a peça boa, a peça genial.. fala para todo mundo... não interessa o sexo a idade e a classe social...

APRESENTADOR: Que saudade ! (tocando no braço de AMANDA)

(Amanda inicia um trecho de Esperando Godot, confundindo o Apresentador )

AMANDA: “Não me toque! Não me faça perguntas! Não fale comigo! Fique comigo! Você me deixou partir. Que dia! Outro dia sem sentido. Pra mim está tudo terminado, não importa o que aconteça( silencio)

APRESENTADOR: (SUSSURRA ALGUMA COISA PARA AMANDA)

AMANDA: Ouvi você cantando. Isso me liquidou. Eu disse: ele ficou sozinho, pensa que eu fui embora ainda por cima canta. Está vendo você fica melhor quando eu não estou. Feliz? E agora? Está vendo você fica pior quando eu estou perto. Eu também me sinto melhor sozinha. Não sei. Você não poderia impedir. Eram dez. Eu não estava fazendo nada. Não sei. Eu juro que não estava fazendo nada. Eram dez. De quê? Será? Dizer o quê? Estou contente. Estamos contentes (Pausa) O que é que agente faz, agora que estamos contentes? “

(O APRESENTADOR COMEÇA A DIZER FRIAMENTE ALGUNS TRECHOS DE WLADIMIR DE ESPERANDO GODOT, ENTENDEU A BRINCADEIRA DE AMANDA)

APRESENTADOR: Eu estava dormindo, enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que acordei que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que Pozzo passou com seu escravo e falou conosco? Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso?

AMANDA: “E se ele não vier? Tudo está gotejando. O pus varia de segundo para segundo. ( Olha para a árvore) Ela não estava aí ontem? Você está sonhando. Eu sou assim. Ou esqueço logo ou não esqueçamos. Eu me lembro dum energúmeno que me deu uma canelada e depois se fez de bobo. Eu me lembro mais quando foi isso? O que me deu um osso. Mais isso tudo foi ontem? E aqui mesmo? Reconhece! O que há para se reconhecer? Toda a merda da minha vida eu chafurdei na lama!

APRESENTADOR: Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. ( Pausa) Com um pé na cova e um nascimento difícil. Do fundo do buraco, indolentemente o Coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos. A árvore estava aí ontem.. tenho certeza...

AMANDA: E você fica falando de cenografia! ( olha a sua volta) Olhe esse esterco! Eu nunca sai daqui! Você e a sua paisagem! Pôr que não me fala dos vermes? Eu mijei toda a mijada de minha vida aqui mesmo. Aqui! No País da Merda! É melhor agente se separar.

APRESENTADOR: Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém estará dizendo: Ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o dormir. (TOCA NO ROSTO DE AMANDA)

AMANDA: O melhor seria me matar, como o outro. Como bilhões de outros. Não posso mais continuar. ( Pausa) O que foi que eu disse?”

APRESENTADOR: Nesse meio tempo....

AMANDA: Nada a fazer... Ele não virá....

APRESENTADOR: Não ?

AMANDA: Acho que não.

APRESENTADOR: Então ...Vamos embora?

AMANDA: Vamos...

APRESENTADOR: Para onde? Nós não temos o que fazer...

AMANDA: É...nada a fazer.....

APRESENTADOR: Mas nós temos que esperar...

AMANDA: Então vamos embora?

APRESENTADOR: Vamos...

AMANDA: Então vamos...

( Os dois ficam imóveis por alguns instantes)

APRESENTADOR: ( Fica ansioso) E então?....

AMANDA: E então.....vamos conversar com calma, já que a gente é incapaz de calar a boca.” O SHOW DEVE CONTINUAR......

APRESENTADOR: Eu gostaria de pedir uma salva de palmas por essa aula de teatro...

(APRESENTADOR aplaude AMANDA)

AMANDA: ( constrangida) O sucesso é estranho. Todas vinham

dizer... É ótimo! Pręmios... Pręmios... Eu parecia viver melhor no palco, com todo o pessimismo de Beckett lá, ao menos, minha vida estava sob a meu domínio.

APRESENTADOR: E o amor?

AMANDA:(Sorri) Vai bem obrigada...

APRESENTADOR: Pode - se dizer que a sua vida amorosa foi um tanto quanto ... diversificada...

AMANDA:A imprensa exagerou... Tive alguns casos e eles disseram que fui uma barba azul... É difícil conviver com as mulheres... Os homens tem certa dificuldade de... aprofundar assuntos ... se é que você me entende... Eles são ótimos na cama ... Mas depois... da cama...Eu por exemplo aprendi a fumar ... porque depois o silêncio era tanto... que a eu tinha que fingir que ficava fazendo alguma coisa... fumava e olhava para o teto... (RISOS) Desculpe -me eu estou sendo....

APRESENTADOR: Mas você se apaixonou... alguma vez....?

AMANDA: ( NERVOSA) Eu sabia que você ia tocar...nisso...

APRESENTADOR: (SEM JEITO) Se você não quiser... Podemos falar de outra coisa...estamos terminando a ...

AMANDA: (GESTO COM A MÃO) Tranqüilidade... Tranqüilidade... Eu me preparei paraisso...O problema com nós atores é que passamos o tempo todo olhando para nósmesmos...ou olhando para o público... ver se estamos agradando... De repente

percebi que estava sozinha... Até então os meus casos não tinham passado de rituais narcísicos... Amávamos a nós mesmos durante a relação...Não havia entrega de nada...Quando me dei por mim.. já estava... muito... madura... e sem ter amado... alguém na vida real... Voltaram os sons dos pássaros e do Rachmaninof... Medo da solidão... Medo terrível... Eu fazia, na época, a pedido de uma deputada feminista, A Mais Forte” de Strindberg... era só para me divertir...Depois tinha os debates com a mulherada... Mas era um papel dificílimo... a personagem não dizia uma palavra durante a peça inteira... só escutava o desabafo de uma esposa... as duas amaram o mesmo homem... Na última cena ela me encarava bem e dizia...”Talvez minha cara... se.. se.... se...

SENHORA Y :

“Talvez minha cara se considerarmos todas as coisas, neste momento, eu sou a mais forte... Você nunca tirou nada de mim. Apenas deu... o que era seu... Você não foi capaz de guardar o amor de um homem... - mas eu fui capaz.. Não foi capaz de aprender a arte de viver...lendo seus livros e representando os seus papéis... mas eu aprendi...Você não pariu um filho... Pôr isso que você é elegante e todos olham para você em todos os lugares.. é pôr isso que você se deixa olhar em silêncio...Eu achava que isso fosse força... Mas não é porque você não tem nada a dizer no mundo real... do quotidiano...Agora eu vou embora... Obrigada... pôr sua bela lição... Obrigada pôr ter ensinado a meu marido como amar... Eu agora vou para casa.... para amá -lo! “(SAI)

AMANDA: E eu ficava no palco...sozinha... matutando...eu tinha que no final sorrir... para que o público ficasse em dúvida sobre qual das duas era a mais forte... Mas aquele sorriso estava me saindo meio... amarelo...você entende? Aquilo foi me dando uma agonia... E eu comecei a sentir uma vontade angustiante de amar na vida real...Lembrou -me o Beija -Flor de Anjo de Pedra...Eu preciso amar... Quem ? Ainda não sei... só sei que eu preciso amar... Eu tinha um pouco de medo... porque eu sabia que seria um amor sem limites.. . eu sempre fui assim... sempre tive que mergulhar nas coisas... até o fim do poço...Perigosamnete... (Amanda está visivelmente emocionada, como que... contrariada)

APRESENTADOR: Você não precisa....

AMANDA: (SEGURANDO VIOLENTAMENTE NA MÃO DO APRESENTADOR) Por favor...Eles fizeram até o público me abandonar... Eu tenho que dizer a eles que... Olha... Depois daquilo tudo, lá no... recolhimento...eu tinha um sonho... que se repetia durante muito tempo... uma espécie de pesadelo que me acompanha até hoje... estou diante de uma platéia.. olhando para um espelho que reflete minha imagem deformada. Salto e faço micagens e o espelho mostra minha própria imagem em várias posições bizarras. A platéia fica em silêncio...murmura ameaçadoramente e começa a abandonar o teatro . Eu então pego o espelho e o viro em direção aos que ficaram, afim de que reflita suas figuras sentadas sem se manifestar...Daí eu os vejo arregalar os olhos para as suas próprias figuras então, cheios de horror, fogem gritando e me vaiando... Eu então, tremendo de raiva , futilidade e ironia, volto o espelho para o vazio da platéia. É então que percebo assustadoramente que estou sozinha...no vazio... na escuridão ! Rachmaninof...

APRESENTADOR: Novembro de 1979...Platéia lotada... toda a crítica assanhada... Estréia de Lágrimas Amargas de Petra von Kant...Fassbinder... Você se lembra? Todo mundo queria ver o seu novo trabalho...Você era um sucesso nacional...

AMANDA: ( FICA SÉRIA ... GRANDE PAUSA.....) É lógico que eu me lembro.....Foi um erro fazer aquela peça naquele momento...

APRESENTADOR: Mas você a cada apresentação era aplaudida em cena aberta...

AMANDA: Foi um erro...

APRESENTADOR: Ainda me lembro dos aplausos finais...Uma ...duas...três....quatro...cinco.... 8... vezes...você voltava para ouvir as palmas e os gritos da platéia...

AMANDA: Foi um sucesso profissional e um fracasso psicológico...Eu não podia fazer uma peça

de uma mulher mais velha que é abandonada daquele jeito infame... Era muito humilhante fazer aquilo todos os dias... Todos os dias subir ao palco e ser abandonada... Eu não devia ter.... Eu sempre fui muito sensível...As personagens... As personagens.... Ai meu Deus... Eu fui louca...Muito louca!

PETRA: Ao menos você podia ter - me dito... podia ter dito que... tinha começado a ter

novos contatos.

(APRESENTADOR PROCURANDO NO CALHAMAÇO DE PAPÉIS. LÊ AS FALAS DE KARINA)

KARINA: Mas o que é que há? Freddi é meu marido. Claro que eu escrevo para ele.

PETRA: Você vivia dizendo que queria o divórcio.

KARINA: Eu disse que talvez me divorciasse. Em seis meses todo mundo muda de idéia.

PETRA: Você sabe o que você é?

KARINA: Não , mas aposto que você vai me dizer já já.

PETRA: Você é uma putinha muito escrota!

KARINA: É? Você acha?

PETRA: É. Eu acho. Um serzinho muito do repugnante> Toda a vez que eu te olho vem

vem ânsia de vômito.

KARINA: Então você está bem contente d’eu ir embora?

PETRA: Estou mesmo. Acho até que você demorou muito. Me pergunto apenas porque

você não foi direto pro trottoir

KARINA: Por que com você era menos cansativo, querida.

PETRA: Ah,sim, compreendo. Deus, como você é odienta. Como você pode humilhar

assim um ser só porque se deixou prender no se jogo...

KARINA: Eu não te menti, Petra.

PETRA: Ah, não, mentiu sim.

KARINA: Eu disse, eu te amo. Isso não é uma mentira, Petra, eu te amo. Mas eu te amo

da minha maneira. Será que você não pode entender?

PETRA: Eu teria tomado as minhas providências desde o início, se você me... Como é que uma pessoa pode ser tão assim odiosa, Karina. Você sabia bem o que... O

que se passava...

KARINA: Isso não é verdade. Durante muito tempo eu não sabia o que se passava. Mesmo você, no início, fazia como se não fosse nada sério.

AMANDA: Louca...Louca...Louca....

PETRA: ( se aproxima de Karina e abraça-a) Mas não é culpa minha se eu te amo. Não é culpa minha. Eu preciso de você, Karina. Tenho profunda necessidade de você.(Se põe de joelhos e abraça os joelhos de Karina) Mas eu quero fazer tudo para você. Eu não quero viver senão pra você, Karina. Eu só tenho você... Só você... Eu... Eu... sou tão só, sem você...tão só Karina.

KARINA: Só, sem a putinha?

PETRA: Oh! Me perdoa, por favor...por favor. Pensa no que me espera. Não seja cruel.

KARINA: Levanta daí. Preciso me despachar.

PETRA: Sua porca, sórdida. (cospe na cara dela)

AMANDA: Todos os dias...Todos os Dias.... Imbecil...Imbecil.....

KARINA: Você vai pagar caro pôr isso. Você jamais vais esquecer disso. (Petra ainda

tenta abraça-la mas Karina a repele)

PETRA: Oh, Karina, eu não sei mais o que eu faço. Compreenda, meu...

KARINA: Me dá dinhero, por favor. Tenho que pagar a passagem. E também para

Frankfurt, o Freddi nunca tem dinheiro.

PETRA: Perfeito. É só pra isso que eu sirvo. Pra pagar. O nosso pai do céu. Quanto?

Vamos, diz? (preenche um cheque)

KARINA: Quinhentos

PETRA: Toma . Leva mil. Assim você podem me gozar o dobro.

KARINA: Quinhentos bastam, sinceramente.

PETRA: Não hesite em levar os mil. Nada mais tem importância agora. Agora você vai

embora de vez, não é?

KARINA: É. (Petra senta-se chorando. Karina vai até ela, lhe acaricia os cabelos) Eu

volto, vai! (Petra faz que sim com a cabeça) Tchau.

PETRA: ( Se dirige à vitrola, bota um disco. Karina sai. Petra soluça desperadamente)Eu sou tão estúpida, tão estúpida! (sobe som da música)

AMANDA: (COM O MESMO SENTIMENTO DE PETRA RE PETE A FRASE) Como eu sou estúpida !....( Meio fora de si um pouco mais alto ) Como eu sou imbecil...

APRESENTADOR: Vamos falar de seus planos para o futuro...Eu soube que você está ....

AMANDA: Eu o amei ...

APRESENTADOR :... Pensando em.....

AMANDA: Mas amei tanto...tanto... que era ... doído ...para o meu coração ...você entende?

APRESENTADOR : Eu gostaria sinceramente que.....

AMANDA: Ele não era tão bonito...(APRESENTADOR DESISTE) mas para mim... ele era um deus... um deus...Eu não olhava mais para mim... eu ficava olhando... olhando para ele e não me cansava... Eu pensava então... Isso era o amor que eu nunca tinha conhecido... cada parte do meu corpo... cada fibra do meu corpo... era para ele .. só para ele... Era o filho que eu abortei... o pai que eu perdi... era a soma de todos os personagens por quem eu havia me apaixonado no palco...Se ele estava ao meu lado eu era feliz... se estava longe... mesmo que fosse no quarto ao lado... eu era infeliz... Quando nós estávamos juntos eu fazia... amor por mim e por ele... eu falava por nó dois as coisas mais doces mais loucas, mais apaixonadas, mais ridículas... Não tinha a mínima importância se ele me amava... Ele não era o meu público... era o meu amor ... meu amor... Quando ele saia... eu cheirava a roupa de baixo dele...eu comia o resto do seu prato... me encharcava com a sua loção de barbear... só para sentir a sua presença.... Rachmaninof nunca mais... Nunca mais... Eu ficava cada vez mais desengonçada... cabelos sem tingir... Não queria que me olhassem mais na rua nem no palco... Parecia que eu o estava traindo... O meu amor... o meu amante... Um dia eu imaginei...que nós estávamos tendo um relacionamento sexual e que a minha pele se fundia com a dele mas de tal maneira...que eu ...que nós... virávamos a mesma pessoa... antropofagicamente... Meu Deus... Meu Deus...

APRESENTADOR: Dizem que você fez Sunset Boulevard...Porque.... Você estava em....

AMANDA: Porque eu estava dura... e era uma grande produção ...Por que tinha aquele menino bonito das novelas contracenando comigo... De repente o público se imbecilizou...Ia ao teatro só para ver meninos e meninas da novela... era ridículo ninguém prestava atenção em nada só ficava olhando a cara dos atores...Era ridículo...Só lixo...E eu levando a sério tudo aquilo... Fiz a Norma com toda a paixão...

(NORMA DE SUNSET BOULEVARD EM CENA PREPARANDO -SE PARA DANÇAR O TANGO)

APRESENTADOR: Dizem que foi até com paixão ... intensa demais.....Parecia real ? Pelo menos foi o que a imprensa...

AMANDA: Bobagens... Só bobagens!!!

APRESENTADOR: Foi coincidência?

AMANDA: Se você quiser relacionar...comparar...você pode comparar tudo...Até o rabo deles com a conchinchina !!!

(ENTRA TANGO VOLUME ALTO - NORMA DANÇA )

NORMA: (dançando um pouco) Joe! (se aproxima dele dançando) Você está absolutamente divino, Vire-se!

(APRESNTADOR PROCURA A PÁGINA)

JOE: Ah, por favor...

NORMA: Vamos! (virando-o) Perfeito! Ombros Maravilhosos. Eu adoro essa linha.

(APRESNTADOR JOGA FORA OS PAPÉIS, COMO SE TIVESSE DECORADO O TEXTO E TRANSFORMA-SE EM JOE DANÇANDO COM NORMA)

JOE: E tudo enchimento, não se iluda.

NORMA; Tome.(põe um cravo branco na sua lapela.)

JOE: Sabe, para mim me vestir foi sempre colocar minha roupa azul marinho.

NORMA: Eu não gosto do alfinete que mandaram, quero um que tenha uma pérola grande e brilhante.

JOE: Bom, eu não vau usar brincos, isso eu garanto.

NORMA; Oh, Joe, vamos tomar um drink.

JOE: Não vamos esperar pelos outros?

NORMA: (ignorando-o) Max, champagne (apontando para o chão Cuidado, isso escorrega. Eu mandei encerar, (brindam com as taças que Max lhes dá) A nós (tomam um gole) Esse chão era de madeira, mas, eu mandei mudar . Valentino disse que não havia nada como, cerâmica para um tango. Vamos!

JOE: Não, não no mesmo chão, que Valentino.

NORMA Basta me seguir

(Dançam um pouco. Ele se esquiva do véu que ela tem na cabeça —

NORMA: Não se curve tanto assim

JOE: É que isso aí incomoda, espeta.

NORMA: É mesmo? (arranca o véu e joga-o no Chão. Max recolhe-o imediatamente. Ela dança de olhos fechados, totalmente debruçada em seu ombro)

JOE: (olhando no seu relógio de pulso) São dez e quinze. A que horas eles vão chegar?

NORMA: Quem?

JOE: Os outros.

NORMA: Não há outros convidados. Não vamos; partilhar essa noite com outras pessoas, Isso é para você e para mim.

JOE: Ah, é ?

NORMA: Me aperte mais...

JOE: Mas é claro. E à meia -noite, o que você acha de parar a orquestra e partir copos de champagne na cabeça do Max?

NORMA: Você acha isso muito engraçado

JOE: Um pouquinho...

( Dançam mais um pouco. Depois se desvencilham)

NORMA: Que ano maravilhoso vai ser o próximo! Como vamos nos divertir. Eu ou encher a piscina para você, ou então abrir minha casa em Malibu e você pode

ter todo o oceano. Bom quando nosso filme terminar eu compro um barco e aí velejamos para o Hawai,..

AMANDA: Eu estava muito...mas muito fraca...Insegura vocę

entende? Eu sabia fazer teatro mas eu exagerei no amor real ... na paixăo... Eu precisava me tratar, eu acho. Doença de Amor... que coisa esquisita...(Amanda começa a chorar...)Mas ele era médico.... Médico... Vocę entende... O meu grande amor era médico...Eu podia

tomar tręs comprimidos... dos brancos e dois dos azuis... E o amava ... E se ele disse...que eu podia... e ele saía... saía.... saía muito....Saía o tempo todo... E eu sozinha... no meu quarto com as luzes apagadas... aquela dor de cabeça... terrível... Por favor... Vocę me conhece... Eu amo a vida...

JOE: (cortando-a) Chega! Você não vai me comprar mais nada.

NORMA: Não seja bobo, (tirando um broche de ouro) Tome, Eu ia te dar isso à meia-noite.

JOE: Norma, eu não posso aceitar, você já me deu muitos presentes.

NORMA: Cala a boca, eu sou rica. Sou mais rica que todo esse novo lixo de

Hollywood. Tenho um milhão de dólares.

JOE: Guarde.

NORMA: (sem Ihe dar atenção) Possuo três quarteirões na cidade. Tenho petróleo no Texas jorrando, jorrando, jorrando. Para que serve senão para nós comprarmos o que quisermos

JOE: (levantando-se) Pode cortar esse nós

NORMA: O que é que há com você?

JOE: Que direito você tem de me ter como seu?

MORMA: Que direito? Quer mesmo que eu diga?

JOE: Por acaso lhe ocorreu que eu posso ter vida própria, que pode ...que pode haver uma garota de quem eu goste?

NORMA: Quem? Dessas que pegam carona ou fazem programa

JOE: O que eu estou tentando dizer é que eu sou errado para você. Você quer um Valentino, alguém com cavalos de polo, um figurão

NORMA (levantando-se)O que está tentando dizer é não quer que eu ame você?. Diga... Diga.Diga! (dá-lhe um tapa na cara e olha-a por um um momento)

AMANDA: (ESTÁ TRANSTORNADA)

APRESENTADOR: (assustado) Eu disse que se voce....

AMANDA : EU TENHO CERTEZA... ERAM OITO COMPRIMIDOS DOS BRANCOS E DOZE DOS AZUIS... TOMAR COM MARTINI...COM MUITO MARTINI... ELE SAIU... EU FIQUEI MUITO SOZINHA.... OS PÁSSAROS E... RACHMANINOFF...RACHMANINOFF... RACHMANINOFF !

NORMA (levantando-se) O que está tentando dizer é não quer que eu ame você?. Diga... Diga.Diga! (dá-lhe um tapa na cara e olha-a por um um momento)

Joe (vai em direção a porta de saída)

Norma- ( o segue falando) Joe, diga que você não mudou. Diga que tudo está como estava. Joe...o que está fazendo ?Joe? (ele a ignora e vai fazendo as malas) O que está fazendo?

JOE: As malas.

NORMA: Você vai me deixar?

JOE: E, vou sim Norma.

Norma: Não, não vai.

Joe: Obrigado por me deixar usar esse lindo guarda roupa e obrigado também

pelos acessórios As outras jóias estão na gaveta de cima.

NORMA: São suas, eu dei para você. Isso não é nada. Você pode ter tudo o que quiser. O que é que você quer? Dinheiro?

JOE: Acabou, você estaria jogando dinheiro fora. Eu não sirvo para o emprego.

NORMA; Não pode ir. Sabe que eu não tenho medo de morrer?

JOE: Esse é um problema só seu,

NORMA; Eu comprei um revólver. Comprei. Comprei. Fiquei na frente do espelho mas não consegui atirar. Acha que estou inventando, não acha? Muito bem.

(sai para buscar o revolver) Está vendo? Você não acredita em mim. Pensa que eu não tenho coragem, não é?

JOE: Ah, claro. Se desse uma boa cena...

NORMA; Você não se importa, mas milhares de pessoas se importam.

JOE: (jogando o relógio que tentava pôr) Ora acorde Norma! Está se matando numa casa vazia. A platéia deixou você há vinte anos, encare isso.

NORMA: Isso é mentira! Eles ainda me querem.

JOE: Não, não querem.

NORMA: E quanto ao estúdio?

JOE. Nenhum de nós teve coragem de falar para você.

NORMA: Isso é mentira, eles me querem. Recebo cartas todos os dias.

JOE: Não vai haver mais filme . Não existem cartas de fãs é tudo falso... foram escritas pela sua secretária.

NORMA: Isso não é verdade.

AMANDA: ( AUSENTE) EU ESTAVA NUA NA BANHEIRA... A AGUA CORRIA PELA TONEIRA...AGUA MORNA.... P0R DEUS QUE EU NĂO QUERIA.... ELE ERA UM RIO DE ÁGUAS CLARAS... E EU....UMA BONECA... GOSTAVA DE FICAR NUA... NÓS DOIS... NAQUELA CASA....MAS ELE APARECEU... COM AQUELE OLHAR... EU ABRAÇAVA MEU FILHO AINDA PEQUENO NÚ....E OS PENSAMENTOS FUGIAM... OS PENSAMENTOS.... VOAVAM...PARA LONGE DA MINHA CABEÇA... AS IMAGENS... ESCURAS.... LUGUBRES... TERRÍVEIS... NOS DOIS RIAMOS E RIAMOS.... MAS ELE TEVE QUE IR.... MEU PAI...MÁSCULO... LIMPO.... GARBOSO... MONTANDO UM CAVALO NEGRO... CABELOS IMPECAVELMENTE PENTEADOS... DOS SEUS OLHOS... UM BRILHO...QUE PAIXĂO... AMOR... AMOR... OS DOIS... MEUS DOIS AMORES... PERTO UM DO OUTRO... LADO A LADO UM DO OUTRO...OMBRO COM OMBRO... PERNA COM PERNA... OS OMBROS NUS... AS COXAS NUAS... LINDOS...LINDOS...AQUELES OLHOS... SEUS OLHOS... NEM TRISTES NEM ALEGRES... OLHAVAM PARA MIM... MEU RETRATO ... MOÇA....MOÇA...BELA... ESPIAVAM-ME NA BANHEIRA.... OLHAVAM-ME DORMINDO SOZINHA... NUA NO VERĂO... MERGULHEI NUA NO RIO ... NO RIO ESCURO E SOMBRIO...QUE ME FEZ SUAVIZAR O CALOR... DAQUELE VERĂO...DAQULES DIAS QUENTES DE VERĂO...( AMANDA ABAIXA A CABEÇA E COMEÇA A CHORAR)( OS FOTÓGRAFOS AVANÇAM EM DIREÇĂO A ELA... OS FLASHES ESTOURAM....)

VOZ EM OFF: “ATENÇĂO CAMERAS ... GRAVAR... PLANOS... EM CLOSE... GRAVAR ... PLANO DE DETALHES!

APRESENTADOR: EU GOSTARIA SINCERAMENTE DE ENCERRAR AGORA ESTA ENTREVISTA.... VOCĘ NĂO MERECE....

VOZ EM OFF: EDITAR COM FINAL DE SUNSET BOULEVARD... EDITAR....

AMANDA: (CHORANDO) Eu mijei toda a mijada de minha vida aqui mesmo.

Aqui! No País da Merda! É melhor agente se separar...

APRESENTADOR: (JOGA SEUS PAPÉIS NO CHÃO E ABRAÇA AMANDA)

(ENTRA RACHMANINOFF... ESTRIDENTE...OS CÂMERAS SOBEM NO PALCO E FAZEM AS TOMADAS DE NORMA E JOE.

JOE: (APRESENTADOR REPETINDO AGORA LENDO O TEXTO) Não vai haver mais filme . Não existem cartas de fãs é tudo falso... foram escritas pela sua secretária.

NORMA: Isso não é verdade !

JOE: (desistindo) Adeus...Norma.

NORMA: Ninguém jamais deixa uma estrela É isso que a torna uma estrela.(aponta a arma para ele que saiu..).

(NO MOMENTO EM QUE NORMA APONTA A ARMA PARA JOE ESTE SE DESCOMPÕE E OLHA ASSUTADO PARA AMANDA QUE DÁ UM GRITO ESTRIDENTE.... PAVOROSO... DIRIGE -SE AO APRESENTADOR E O ABRAÇA CHORANDO ESTE NĂO SE MEXE E FICA OLHANDO ENIGMÁTICO PARA OS CÃMERAS... DEPOIS AFASTA AMANDA, DE SI, E A ENCAMINHA ATÉ O SOFÁ . ESTÁ COMPLETAMENTE TRANSTORNADA...O APRESENTADOR... A OLHA TENSO....ALGUNS FOTÓGRAFOS SE APROXIMAM... E ELA SUBTAMENTE OS ENCARA DECIDIDA ...ELES, AOS POUCOS, VĂO ABAIXANDO AS CÂMERAS.... EM SINAL DE RESPEITO....)

APRESENTADOR: E entăo.... Nada a fazer.... Como vocę se sente?

AMANDA: ( OLHANDO PARA FRENTE)... COM MEDO.... MUITO MEDO....

APRESENTADOR: Entăo vamos embora...

AMANDA: Vamos? Para onde?

APRESENTADOR: Vamos?

AMANDA: Vamos....

(Os dois năo se movem.... sentam-se tensos e olham para a platéia)

VOZ EM OFF:

VALEU... REUNIĂO DA EQUIPE DE EDIÇĂO AS OITO... DESLIGAR EQUIPAMENTOS....OBRIGADO PELA PRESENÇA DE TODOS... (música de encerramento do Programa)

(ENTRAM OS MEMBROS DA PRODUÇÃO E CUMPRIMENTAM AMANDA.. O APRESENTADOR DÁ UM SUAVE BEIJO NO ROSTO DELA.... AMANDA SE DIRIGE, SÉRIA, PARA A PLATÉIA ....SORRI... E CURVA-SE SOLENTEMENTE.... A MÚSICA SOBE E A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA. BLACK - OUT)

FIM

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